O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

domingo, 21 de agosto de 2016

Eça de Queiroz - O que pede o compromisso do casamento

A PAIXÃO, O NAMORO, E O CASAMENTO
Casamento. 03. - O que pede o compromisso do casamento.
«Duas almas que se juntam para sempre, e que têm individualidades diferentes, não podem jamais tornar a ter interesses diferentes». (1, carta de 12Out1885)
Uma aproximação ao casamento de Eça e Emília.
Como seriam as pessoas desse tempo?...
Um casamento nas Lapas, Torres Novas , em 28Set1898,
Noivos à saída da Igreja de N.ª Sr.ª da Graça.
Mãe e irmã mais nova compõem o véu da noiva.
A filha mais velha de Eça de Queiroz e Emília Castro, Maria, com a ajuda do irmão António, publica em 1949, em reacção a tanto que se dissera - distorcidamente e erradamente, na opinião dos filhos - cerca de 4 anos antes, por ocasião da celebração do centenário do nascimento do pai, e com o objectivo de esclarecer e corrigir o que chegam a claramente designar como «tanta infâmia», algumas cartas trocadas entre os pais, para mostrar «um grande coração [de Eça de Queiroz] , a família e os amigos e ainda toda a pobreza e a miséria que lhe bateu à porta.» (1)
Trata-se de uma publicação deliciosa, "isenta" como são isentas as apreciações carinhosas, feitas com base na memória, de filhos que muito amaram os seus pais. Maria tinha 13 anos quando a levaram junto do leito onde viu o pai pela última vez, já sabedora do que lhe tinha acontecido. A mãe Emília viveu até 1934. Assim, passaram mais de 40 anos sobre a morte do pai, e mais de 10 no que diz respeito à mãe, quando as cartas são publicadas - 40 anos, a distância temporal entre a intensidade emocional de uma jovem adolescente e uma senhora que muito, entretanto, amadureceu.
Com os olhos de coruja que a tradição entrega às boas mães, Maria comenta, então, o pensamento do pai da seguinte maneira:
«Reconhece a cada um o direito de ter gostos diversos, "individualidades diferentes" - mas o que nunca mais poderão ter são "interesses diferentes".» (2)
 O que pede, na verdade, o compromisso do casamento? O casamento é sempre um contrato. Um contrato com disposições que estabelecem direitos e deveres.
Noutras entradas desta publicação apresento outros pensamentos de Eça sobre o casamento, dele continuando a falar a Emília, mas também aos amigos. O de agora refere-se ao momento que sempre deve acontecer, seja no século XIX, XX ou XXI - o esclarecimento das condições de contrato entre as partes contratantes.
Bem, este escrito não é um ensaio sobre a instituição do casamento, é só sobre o casamento de Eça de Queiroz. Essencialmente, é um casamento feito segundo os cânones, à época, da Igreja Católica. O casamento terá lugar no dia 10 de Fevereiro de 1886, no oratório do solar de Santo Ovídeo, pertença dos Condes de Resende. Que disseram eles em voz alta, perante o testemunho da família e convidados presentes, e sob orientação do padre celebrante? Disseram o mesmo que dizem os casais nas mesmas católicas igrejas?
O que quereria mesmo dizer, nas palavras de Eça, nunca mais individualidades diferentes ter interesses diferentes? E o que quererá isso dizer nos dias de hoje?
Numa canção de 1990, que continua a ser muito trauteada, Rui Veloso canta estes versos de Carlos Tê:
«Mas tu não ficaste, nem meia hora.
Não fizeste um esforço para gostar e foste embora.
Contigo aprendi uma grande lição.
Não se ama alguém que não ouve a mesma canção.»
Que terão estes versos a ver com a afirmação que, a quente, em pleno período de noivado, o maduro senhor faz à nitidamente mais jovem senhora?
Entretanto, oficialmente, à beira do altar, o que as testemunhas do compromisso de união ouvem é o seguinte:
«Eu (dizer o nome do noivo)
Prometo a ti, (dizer o nome da niova)
Ser-te fiel até ao fim
Amar-te como a mim
E respeitar-te assim
Na alegria e na tristeza
Na riqueza e pobreza
Na saúde e na doença
Todos os dias da nossa vida.»
Foram estas palavras que as testemunhas ouviram Eça declarar à pessoa com quem publicamente contraía matrimónio na cerimónia do pequeno templo religioso? Como casa - sim, como casa - uma declaração assim com as diferenças tão claramente vincadas na afirmação do escritor noivo?
Talvez este apontamento devesse acabar por aqui, para que o foco de reflexão a que ele quer levar não se perca; mas não resisto a chamar ainda a atenção para um aspecto a que sou compelido a pensar em resultado dada sua tão difícil e preocupante presença nas circunstâncias actuais dos confrontos entre culturas e religiões.
Numa carta que escreve ao «amigo sublimemente indiscreto», em 30 de Agosto de 1885, de Bristol, Eça de Queiroz expressa-se assim:
«aí vai a carta [para a mãe de Emília e do próprio amigo, o conde de Resende]; e ela tem de resto a grande, grandíssima vantagem de legitimar desde já as coisas, torná-las oficiais, e permitir portanto que tua irmã e eu nos escrevamos de vez em quando pour nous envoyer un petit salut d'amitié. Porque seria fantástico que permanecêssemos todo este tempo num silêncio solene - como se faz em países muçulmanos; e ainda em países muçulmanos, os fiancés correspondem-se por meio de ramos de flores.» (4, carta de 30Ago1885) 
 De Agosto a Outubro, da escrita ao amigo indiscreto à noiva, o noivo caminha do imaginado silêncio contemplativo para o ansioso e reclamativo protesto de notícias constantes, diárias. No rol das coisas reclamadas, o noivo não pede apenas palavras amorosas e confissão de sonhos:
«Ontem o papel acabou-se-me materialmente - quando eu lhe ia falar de coisas práticas. Porque, é verdade, nunca ainda conversámos sobre coisas práticas. Eu chamo coisas práticas certos detalhes como a época do nosso casamento, etc.» (5, carta de 14Out1885)
Palavras-chave: casamento, marriage, noivado, contrato de casamento, marriage contract
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 418.
(2) Eça de Queiroz, Eça de Queiroz entre os seus, apresentado por sua filha, Cartas Íntimas, Lisboa, Caminho, 2012, p. 23.
(3) A. Campos Matos, Eça de Queiroz, uma Biografia, V Cronologia, Porto, Edições Afrontamento, 2009.
(4) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 393.
(5) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 420.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

AFECTOS - A amizade, um sentimento especialmente saboroso. 01.

AFECTOS
A amizade, um sentimento especialmente saboroso. 01.
«bavarder com aqueles por quem se tem amizade é o maior lucro que da amizade se tira». (19, p. 77) (1)
Bavarder quer dizer conversar, falar, bater um papo - descomprometidamente, o que vier ao fio livre
Jaime Batalha Reis
do pensamento; e abundantemente, é falar muito.
Eça regista assim esta ideia na fase em que ansiosamente procura intensificar a troca de cartas com a sua muito recente noiva, logo após receber do Porto - ele está em Londres - o consentimento da Condessa de Resende, mãe de Emília, para que noivassem, senhora que explicitamente reconhecia:
«as boas qualidades e merecimento de V. Ex.ª, vendo além disso minha filha muito satisfeita [...] não posso deixar de o aprovar, esperando que Deus os abençoará.» (2)
O valor de "o maior lucro" para a conversa descomprometia e abundante com os amigos não é uma atribuição vã que Eça de Queiroz declame na vertigem poética de noivo apaixonado.
Não esqueçamos que ele é um noivo tardio, senhor de sentimentos amadurecidos na experiência pessoal e na reflexão passada aos seus escritos.
Um dos seus mais queridos, profundos e leais amigos, Jaime Batalha Reis, na Introdução que escreve, em 1903, às "Prosas Bárbaras", conta-nos um muito significativo episódio do bavarder em que Eça tanto se empenhava e com que se deliciava, teria Eça 21 ou 22 anos; Jaime, 19 ou 20; e Salomão, 24 ou 25:
«Uma noite, no Verão de 1867 ou 1868, depois de cear, o Eça de Queiroz, o Salomão Saragga e eu, fomos de passeio, conversando, até Belém. A noite estava muito quente. Havia uma grande claridade de lua cheia. Seriam umas duas horas da madrugada quando chegámos à praia da Torre. Quase varado na areia, havia um barco. Metemo-nos la dentro. A maré enchente fez-nos flutuar. Aí continuámos a nossa conversação até que o dia apareceu e o sol se levantou por detrás da casaria e dos altos de Lisboa. Desembarcámos então e dirigimo-nos para Belém, com fome, em busca de uma Taberna ou Restaurante. Queríamos almoçar ali mesmo, continuando, à beira do rio, a nossa discussão.»
Eça de Queiróz partira, em final de Dezembro de 1866 para Évora, onde foi dirigir o jornal de oposição ao Governo, o "Distrito de Évora" e regressara a Lisboa, a casa dos pais, em 2 de Agosto de 1867. Em 20 de Dezembro o Diário de Notícias publica o anúncio seguinte: «O distinto académico o Sr. Eça de Queiroz  vai estabelecer-se como advogado na Praça D. Pedro, 26, 4.º andar [em Lisboa]» (3).
De que falariam eles, abundantemente, nas suas conversas?... De que falam os amigos?...
Concretamente, de que falaram os três embarcados naquela noite toda?...
Desta e de outras conversas, Jaime Batalha Reis confessa, na Introdução, cerca de 3 anos após a morte do amigo, que lamenta não ter guardado registo do tanto que escreviam nos papéis e nas paredes nestes encontros. Especificamente do encontro de "marinheiros", felizmente, consegue reproduzir de memória o problema que criaram enquanto matavam a fome. O Malheiro de que falam é o amigo, coitado, à porta de quem bateram por volta das cinco horas da manhã a pedir que lhes desenrascasse dinheiro para poderem ir matar a fome; ele deu-lhes três moedas de cinco tostões.
O enunciado do problema:
Cristo deu-nos o amor,
Robespierre a liberdade;
Malheiro deu-nos três pintos:
Qual deles deu a verdade?
Diz ainda Batalha Reis, a fechar a memória deste episódio escreve:
«Almoçando, o Eça de Queiroz e eu glosámos e resolvemos o problema em quatro décimas, cantadas ali logo, ao acompanhamento do Fado que continuava a ouvir-se gemer na cozinha do rés-do-chão. Perderam-se estas décimas que com efeito sobrescritámos para o Lourenço Malheiro, e duas das quais, escritas pelo Eça de Queiroz, eram de uma graça cintilante.»

Palavras-chave: amizade, friendship, amigos, friends, conversar, talk, Jaime Batalha Reis
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 390.
(2) Eça de Queiroz, "Eça de Queiroz entre os seus, apresentado por sua filha, Cartas Íntimas", Lisboa, Caminho, 2012, p. 23.
(3) A. Campos Matos, "Eça de Queiroz, uma Biografia", V Cronologia, Porto, Edições Afrontamento, 2009.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Desejos Pessoais versus Convenções Sociais: p'ra que lado é que me viro, p'ra que lado?

TORNAR-SE PESSOA.
Controlo dos impulsos e aceitação das convenções sociais. 01.
«O coração tem os seus élans, mas a vida tem também os seus cerimoniais. Que devo fazer?" (Eça de Queiroz, Carta a Manuel de Castro, Conde de Resende) (1)
Quando assim escreve, quando assim sente, o apaixonado Eça de Queiroz é praticamente quarentão,
Emília de Castro Resende antes do
 seu casamento com Eça de Queiroz
faltam-lhe apenas 4 meses para lá chegar. E já será depois de entrar nos "entas" que ele casará com Emília de Castro. A carta é dirigida ao irmão da apaixonada, numa troca de correspondência que, segundo Maria d'Eça de Queiroz, filha do escritor, terá sido da iniciativa do conde de Resende. Conhece-se também a carta que já no dia 28 de Julho Eça enviara, provavelmente como primeira resposta, ao seu "amigo indiscreto".
Aos 40 anos, Eça de Queiroz tem já a mente disciplinada pela exigência e esforço da escrita. Humanamente, tem a experiência de um número considerável de relacionamentos amorosos, até com duas irmãs americanas - em simultâneo!; e, naturalmente, conhece também, a experiência amorosa de muitos dos seus amigos. Mas...
Mas mesmo assim, na mesma carta, Eça escreve duas vezes a mesma pergunta - «Que devo fazer?»; e ainda mais 3 outras perguntas reflectindo ansiosas dúvidas.
Mas como fazer os sujeitos com metade da sua idade, na pujança das exigência biológicas e hormonais, que são, afinal, os habituais protagonistas dos afectos, impulsos e atracções amorosas assim tão intensas?
Ele próprio, o escritor, deixa-nos uma muito interessante pista para a resposta à pertinente pergunta.
Na verdade, na mesma carta ao querido amigo, irmão da apaixonada, logo a seguir, Eça escreve:
«Tu que foste o amigo sublimemente indiscreto - sê agora o conselheiro generosamente avisado.»
Quer dizer, o apaixonado declara que precisa de um amigo, mostra confiança e antecipa gratidão.
Ele reconhece o impulso que o motiva
«Se eu pudesse escutar só o desejo do meu coração - partia para aí amanhã.»
e também, implicitamente, que precisa de controlar tal impulso.
Eça está em Londres, que nunca terá sentido tão longe da Granja, em Portugal, quanto naquele momento!
Parece, pois, que a distância e a idade são determinantes para que o ansioso enamorado consiga ter mão nos impulsos e aceite percorrer as etapas das convenções sociais.

Palavras-chave: impulsos, afectos, paixão, convenções sociais, socialização, amigos
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 390.

sábado, 13 de agosto de 2016

OS COMPORTAMENTOS - O riso 01.

OS COMPORTAMENTOS
O riso 01.
«O riso é a mais antiga e ainda mais terrível forma de crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta duma instituição, e a instituição alui-se; é a Bíblia que no-lo ensina sob a alegoria, geralmente estimada, das trombetas de Josué, em torno de Jericó. Há uma receita vulgar para produzir o riso: toma-se, por exemplo, um personagem augusto; puxa-se-lhe a língua até ao umbigo; estiram-se-lhe as orelhas numa extensão asinina; rasga-se-lhe a boca até à nuca; põe-se-lhe um chapéu de bicos de papel: bate-se o tambor e chama-se o público.» (1, p. 168)
Ramalho Ortigão, por Felizardo
Não será motivo de polémica discussão dizer-se que rir faz bem à saúde, e Eça de Queiroz também escreveu sobre essa espécie de riso. Onde há riso há alegria, há satisfação, há bem-estar.
As crianças sabem por instinto que, quando os pais descobrem as marotices que elas fazem, um sorriso carinhoso tem boas hipóteses de aplacar o aborrecimento ou a zanga dos pais; e se as crianças conseguirem fazer os pais rirem-se, melhor ainda. Sobre esta força do riso falo noutro escrito de Eça que junto a este está.
Há um poeta ainda recente que canta que a cantiga é uma arma; mais velho, bem mais velho, o escritor diz-nos praticamente o mesmo acerca do riso. O comportamento do riso tem uma relação muito íntima com o exercício da inteligência. É por isso que Eça diz que o riso é terrível - é porque é eficaz, atinge o âmago do entendimento, é convincente. Atinge sem fazer uso de formas de crítica mais rudes, mais próximas da agressão directa, que tendem a despoletar reacções de defesa, bastante menos pensadas, mais próximas da reacção agressiva directa, do tipo "olho por olho, dente por dente", e tomadas logo como reacções de legítima defesa. Quer dizer, o riso terá mais chances de inibir a reacção agressiva da pessoa visada.
Para Eça, o riso que neste trecho ele descreve - a receita, como ele diz - é uma forma simples de riso, de fazer rir. Na continuação da sua escrita ele, a propósito de Ramalho Ortigão, vai discorrer sobre o riso como arma de intervenção e crítica social e política, em formas cada vez mais contundentes. Assume que concorda com um “grande pintor de Paris”, que diz que a multidão vê falso, e que o que Ramalho Ortigão escrevia nas Farpas, com os processos do riso, “era obrigar a multidão a ver verdadeiro”. (1, p. 169)
Não quero deixar de assinalar aqui que, lá bem para a frente, no longo elogio a Ramalho Ortigão a que fui buscar o excerto-gatilho deste discorrer, Eça explicita matizes interessantes acerca do riso, que valerá a pena olhar e conhecer nouros apontamentos sobre o comportamento do riso. Só para justificar um pouco o que acabo de dizer: algumas longas páginas depois da que aqui me servi, diz ele: “Nunca o vi [a Ramalho Ortigão] dar uma gargalhada; às vezes dá uma boa e sã risada, e raras vezes o vejo sem um sorriso”. (1, p. 178) Não se fica com a ideia de perceber um pouco melhor as diferenças comportamentais ligadas às gargalhadas, às risadas e aos sorrisos?

Palavras-chave: riso, crítica social, crítica política, intervenção social, intervenção política
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008.

domingo, 24 de julho de 2016

FALAR E ESCREVER, DE SI E PARA OS OUTROS É preciso saber palavras caras para escrever bem? 01.

FALAR E ESCREVER, DE SI E PARA OS OUTROS
É preciso saber palavras caras para escrever bem? 01.
«só os termos simples, usuais, banais, correspondendo às coisas, ao sentimento, à modalidade simples, é que não envelhecem. O homem mentalmente pensa em resumo, e com simplicidade; nos termos mais banais e usuais: termos complicados, são já um esforço de literatura: — e quanto menos literatura se puser numa obra de arte, mais ela durará, por isso mesmo, que a linguagem literária envelhece e só a humana perdura.» (Eça de Queiroz, A Correspondência de Fradique Mendes (Memórias e Notas), Edição Crítica das Obras de Eça de Queiroz. Lisboa, IN-CM, 2014, p. 348)
Saavedra Machado, Eça de Queiroz, In Memoriam,
2,ª ed., Coimbra, Atlântida, 1947
O livro "Doze segredos da Língua Portuguesa, a nossa língua como nunca a pensou ver" é muito interessante. Ao nono segredo, o autor do livro, Marco Neves, titula claramente: O português não está a ir desta para melhor. No que escreve abala a "certeza", adquirida por velhos processos de construção de ideias estereotipadas e preconceituosas, de que a Língua Portuguesa vai de mal a pior. Podemos todos estar descansados:a língua portuguesa está bem e recomenda-se.
Eu entendo o que vai na cabeça das pessoas. Ora, também eu fico às vezes à beira de perder a paciência com os meus alunos que insistem comigo que não percebem as minhas dúvidas, é que, segundo eles, não é complicado eu "ver aquela cena" que eles imaginam estar a pôr ali mesmo à frente dos meus olhos; que não insista eu qque eles entendam porque eles "não fazem a mínima"; que me cumprimentam com o brevíssimo «'tá tudo?...»; e as abreviaturas mas mensagens de texto nos telemóveis pedem quase manual de decifração. Também, é verdade, era exasperante, e agora tornou-se corriqueiro, nas aulas, a bem batida pergunta, «Temos de escrever isso?...»
Nunca se escreveu tanto como agora... Qual é, então, mais inimigo da expressão da língua - é a falta de vocabulário, é a preguiça de escrever, ou é a pressa de comunicar? Lembro-me que quando me apresentei, no Instituto Superior Técnico, ao Professor acompanhante da minha tese de mestrado, ele logo me avisou: «Não leio email com mais de 3 ou 4 linhas, só de ver que são mais fico logo sem vontade de as ler, por isso, veja como me escreve. É que não tenho tempo para mais.»
Não ter tempo?... Há poucos dias, Jorge Barros, o notável mestre da Fotografia das coisas, dos locais e das pessoas, alterou a hora do encontro que tinha marcado comigo, o nosso primeiro encontro. Antecipou-o em meia hora. Logo pensei que a sua vida era uma azáfama, que eu estaria a importuná-lo; era por respeito por mim que antecipava a conversa em vez de a cancelar. Nada disso!, constatei que era apenas para poder estar um pouco mais comigo, para termos mais tempo para conversar!
Será que a escrita vem da fala?, e a fala vem do que se troca no encontro pessoal - sobretudo no que não marca logo à partida a hora de acabar?


Palavras-chave: vocabulário, dicionário, escrita, escrita, leitura, arte, literatura, língua
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sábado, 16 de julho de 2016

TORNAR-SE PESSOA. O papel da mãe na determinação do comportamento do bebé. 01.

TORNAR-SE PESSOA.
O papel da mãe na determinação do comportamento do bebé. 01.
«A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é
Eça de Queiroz e a filha Maria em Torquay
"profundamente filho da mulher", disse Michelet. Sobretudo pela educação. Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer - um herói ou um pulha.

Diz-me a mãe que tiveste - dir-te-ei o destino que terás.
A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães.» (Eça de Queiroz, Obras de Eça de Queiroz, vol. XV, Uma Campanha Alegre, Edição do Centenário, Porto, Lello & Irmão, 1948, p. 413)
A. Campos Matos, num artigo publicado na Revista Portuguesa de Psicanálise, n.º 32[1]: Janeiro-Junho de 2012, pp. 41-52], e republicado em Eça de Queiroz, Silêncios, Sombras e Ocultações, também em  2012, pelas Edições Colibri, afirma nunca ter visto comentado «Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas.» (E. Colobri, p. 295) Aconselhado pela prudência, ainda não serei eu quem abrirá os comentários desejados ou em falta.
Na verdade, para um psicólogo, aluno entusiasta do dr. Pedro Luzes, notável psicanalista e profundo estudioso de Eça de Queiroz, a tentação de ousadas interpretações psicológicas que tirem partido da bem conhecida rejeição a que a mãe do escritor logo o votou, mesmo antes que o bebé tivesse nascido, é bem grande; mas resisto.
Eça tem 26 anos quando assim escreve. Conhecerá o casamento e a paternidade apenas 15 anos depois. Não deixa de ser impressionante que ele, tão novo, pensasse de forma, no meu entender, tão clarividente; clarividente e correcta!
Provocando a posição do determinismo da influência materna, absoluto e inabalável, que se pode deduzir das palavras do jovem Eça, quase me apetece verbalizar a presunçosa interrogação de que o mármore, em gastando-se - sim, o mármore também se gasta! -, o que fica?, o que deixa na criança feita homem? Não, não me interessa ir por aqui.
A frase de Michelet, «Je me sens profondémemt fils de la femme», reeditada em 1861, na obra "Le Pretre, la Femme et la Famille", é a afirmação de um homem maduro (Michelet nasceu em 1798), e Eça terá pensado, assim mesmo, "profundamente", sobre ela.
Herói ou pulha. Nos anos 20 do século XX, nos Estados Unidos da América, John Waston (o "pai" da Psicologia Behaviorista, que tão poderosa ainda é nos países anglo-saxónicos), mesmo que numa forma de pensar bastante diferente, afirma, também convictamente, o poder de, pela educação, fazer das crianças polícias ou ladrões, pelo simples arbítrio de quem educa. (1)
Repito, recomenda-me a prudência que fique por aqui, salientando apenas a importância tremenda que tem, no desenvolvimento infantil, os cuidados maternos, a educação e a influência social que a criança recebe da mãe - a mãe biológica ou a que dela faz a vez.
Prossiga o interminável confronto Natureza versus Cultura, entre Inato versus Adquirido.


Palavras-chave: pedagogia, mãe, pai, educação, relação mãe-filho, socialização, natureza versus cultura, inato versus adquirido
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(1) «Give me a dozen healthy infants, well-formed, and my own specified world to bring them up in and I’ll guarantee to take any one at random and train him to become any type of specialist I might select — doctor, lawyer, artist, merchant-chief and, yes, even beggar-man and thief, regardless of his talents, penchants, tendencies, abilities, vocations, and race of his ancestors.» John Watson, Behaviorism, New York, People's Institut, 1924, p. 82.

terça-feira, 12 de julho de 2016

A MENTE E O QUE A MOVE - QUERER É MESMO PODER? O papel determinante da curiosidade. 01.

A MENTE E O QUE A MOVE - QUERER É MESMO PODER?
O papel determinante da curiosidade. 01.
«A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América:- mas estes dois impulsos, tão diferentes em dignidade e resultados, brotam ambos dum fundo intrinsecamente precioso, a actividade do Espírito.» (Eça de Queiroz, Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa V (da Revista Moderna), Eduardo Prado. Lisboa, INCM, 200513, p. 120)
A crónica Eduardo Prado foi publicada em 1898, em fase de sofrimento já especialmente crónico do escritor.
A curiosidade foi a irresistível sede de saber que, com a simbólica tentação de Eva, fez a Humanidade inteira perder o Paraíso.
A curiosidade foi a fascinante força infantil (Eça tem razão, é uma coisa instintiva) que prendeu o psicólogo suíço Jean Piaget ao labor que lhe permitiu construir, tijolo a tijolo, um tremendo edifício de conhecimento sobre o desenvolvimento da mente infantil e da inteligência humana. A curiosidade desencadeia a acção, e da acção nascem as obras humanas. A curiosidade não é característica da espécie humana; mas - e mais uma vez Eça tem razão - é no ser humano que ela ganha "complexidade infinita".
Mais dois pequenos excertos da mesma crónica, e não preciso de comentar mais nada...
«O espírito porém que incita o homem a deixar a quietação do banco do seu jardim, a trepar a um muro escorregadio, a espreitar o jardim vizinho, possui já uma estimável força de vivacidade indagadora: - e a tendência que o moveu é essencialmente idêntica à tendência que, noutro tempo, levara outro homem a subir às rochas de Sagres, para contemplar, com sublime ansiedade, as neblinas atlânticas. Ambos são dois espíritos muito activos, almejando por conhecer o mundo e a vida que se estendem para além do seu horizonte e do seu muro.»
 O outro excerto:
«Mas ambos eles, o criador de civilização e o criador de escândalo, obedeceram à mesma energia íntima de iniciativa descobridora. São dois espíritos governados pela curiosidade, a vil curiosidade, como lhe chama Byron, com romântica ignorância... E de resto, sem essa qualidade vil, nunca o primitivo Adão teria emergido da caverna primitiva, e todos nós, mesmo o curiosíssimo Byron, permaneceríamos, através dos tempos, solitários e horrendos trogloditas.»
Afinal, não resisto a mais um pequeno comentário: será possível conter a curiosidade nefasta, "vil", "escandalosa"? Penso que sim - pela acção autorregulada da tentativa-erro; e pelo papel sábio desempenhado pela educação - em casa, na escola, nas comunidades de pertença.


Palavras-chave: curiosidade, pedagogia, motivação, ambição, educação, regulação dos comportamentos, autorregulação
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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A ESCOLA, “p’ra que lado é que me viro, p’ra que lado" - A educação e a escola. 01.

A ESCOLA, “p’ra que lado é que me viro, p’ra que lado"
A educação e a escola. 01.
«Sobretudo nas aldeias é quase impossível atrair ao estudo, numa saleta tenebrosa e abafada, crianças inquietas que vêm do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola não deve ter a melancolia da cadeia. Pestallozi, Froebel, os grandes educadores, ensinavam em pátios, ao ar livre, entre árvores. Froebel fazia alterar o estudo do ABC e o trabalho manual; a criança soletrava e cavava. A educação deve ser dada com higiene. A escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória, e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino. (13, p. 113)» 
Que resiste, desta apreciação de Eça, aos mais de 100 anos que já passaram desde que, originalmente, o escritor assim escreveu em As Farpas?... Se calhar, bem mais do que seria de desejar… Vejamos:
- vivemos um tempo em que se volta a invocar com grande intensidade os nomes e os exemplos de Pestallozi e Froebel - sinais dos seus extraordinários exemplos de sensibilidade humana e cuidado pedagógico
- as crianças e os jovens, em todo o Mundo tal se constata, estão, maioritariamente, nas escolas, nas salas de aula, "enfastiadas", "sem vontade", e "sem inteligência"
- as grilhetas mantêm-se firmes, reguladas por complexos e muito limitadores normativos legais; limitadores para todos: os alunos, os professor e os pais
- o professor continua a dominar, sem a força da palmatória, mas com procedimentos autoritários e disciplinares , às vezes bem mais perversos que as palmatórias
- o tédio e a rotina grassam… quem não concorda?...


Palavras-chave: escola, pedagogia, motivação, ambiente escolar
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13 – Queiroz, E. Uma Campanha Alegre. Das Farpas. Vol. II. Lisboa, Companhia Nacional Editora, 1891. (http://purl.pt/23928/3/l-72582-v/l-72582-v_item3/index.html#/10)

sábado, 2 de julho de 2016

A VISÃO DO MUNDO - As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.

A VISÃO DO MUNDO
As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.
«Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças, que tem os seus clássicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e génios – em nada inferior à nossa literatura de homens sisudos. Aqui apenas o bebé começa a soletrar, possui logo os seus livros especiais: são obras adoráveis, que não contêm mais de dez ou doze páginas, intercaladas de estampas, impressas em tipo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assunto é uma história, em seis ou sete frases, e decerto menos complicada e dramática que O Conde de Monte-Cristo ou Nana; mas, enfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catástrofe.
D. Emilia de Castro Pamplona, esposa do escritor e os quatro filhos
Tal é, para dar um exemplo, a lamentável tragédia dos Três Velhos Sábios de Chester: eram muitos velhos e muito sábios; e para discutirem coisas da sua sabedoria, meteram-se dentro de uma barrica; mas um pastor que vinha a correr atrás de uma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os três velhos sábios de Chester!
Como estas há milhares: a Cavalgada de João Gilpin é uma obra de génio.
Depois, quando o bebé chega aos seus oito ou nove anos, proporciona-se-lhe outra literatura. Os sábios, a barrica, os trambolhões, já o não interessariam; vêm então as histórias de viagens, de caçadas, de naufrágios, de destinos fortes, a salutar crónica do triunfo, do esforço humano sobre a resistência da Natureza.
Tudo isto é contado numa linguagem simples, pura, clara – e provando sempre que na vida o êxito pertence àqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio, e bondade. Raras vezes se leva o espírito da criança para o país do maravilhoso – não há nesta literatura nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se fala de anjos ou de fadas, é de modo que a criança, naturalmente, venha a rir-se desse lindo sobrenatural, e a considerá-lo do género «boneco», com os seus próprios carneirinhos de algodão.
O que se faz às vezes é animar de uma vida fictícia os companheiros inanimados da infância: as bonecas, os polichinelos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existência de uma boneca honesta e infeliz; ou os sofrimentos por que passou em campanha, numa guerra longínqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta literatura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a criança – mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e misérias atravessaram aqueles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas baionetas torcidas ela todos os dias endireita com os dedos: e assim pode ficar depositado num espírito de criança um justo horror da guerra.
As lições morais que se dão deste modo são inumeráveis, e tanto mais fecundas quanto saem da acção e da existência dos seres que ela melhor conhece – os seus bonecos.
Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze anos: popularizações de ciências; descrições dramatizadas do universo; estudos cativantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a história; e, enfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crua ponha no espírito tenro securas de misantropia, nem uma falsa idealização produza uma sentimentalidade mórbida.
É no Natal principalmente que esta literatura floresce.» (O Natal - A "Literatura de Natalç" para crianças,  Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias), Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 121-22) (1)
O texto onde fui buscar este (longo) excerto tem a data de 9 de Fevereiro de 1881. Eça de Queirós só será pai 6 anos depois.
Poderia eu ter optado por fazer uma transcrição mais pequena, mais directamente focada no tema da educação familiar e social do assunto das guerras entre os povos? Poderia, mas, como agora se tornou moda dizer até à exaustão, não seria a mesma coisa: que lição de pedagogia de Eça de Queirós sobre as leituras para crianças, ao longo das várias etapas do seu desenvolvimento!
Num tempo em que os sofisticados jogos outros programas informáticos invadiram imperialmente as horas de trabalho e de lazer das crianças, e colonizaram os seus interesses e motivações, o que valem estas dissertações e apreciações do notável escritor?
Para mim, valem muito. Repare-se como Eça de Queirós mostra uma sensibilidade notável para a evolução dos afectos, das motivações, das necessidades pessoais, das etapas do desenvolvimento cognitivo e da fantasia; e, finalmente, da aprendizagem social das crianças.


Palavras-chave: desenvolvimento pessoal, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, literatura infantil, visão do mundo
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quarta-feira, 22 de junho de 2016

CULTURA DE ORIGEM, CULTURA DE PERTENÇA - Ser português. Há uma maneira de ser português? 01.

A CULTURA DE ORIGEM, CULTURA DE PERTENÇA
Ser português. Há uma maneira de ser português? 01.
«Monsieur le Rédacteur de la Revue Universelle
(…) elle [a obra, O Mandarim] caractérise fidèlement, ce me semble, la tendance la plus naturelle, la plus spontanée de l’esprit portugais. Car, quoique aujourd’hui toute notre jeunesse littéraire, et même quelques-uns des ancêtres échappés du Romantisme, s’appliquent patiemment à étudier la nature, et font de constants efforts pour mettre dans les livres la plus grande somme de réalité vivante, nous sommes restés ici, dans ce coin ensoleillé du monde, très idéalistes au fond et très lyriques. Nous aimons passionnément, Monsieur, à tout envelopper dans du bleu ; une belle phrase nous plaira toujours mieux qu’une notion exacte ; la fabuleuse Mélusine, dévoratrice de cœurs d’hommes, charmera toujours nos imaginations incorrigibles bien plus que la très humaine Madame Marnésse ; et toujours nous considérerons la fantaisie et l’éloquence comme les deux signes, et les seuls vrais, de l’homme supérieur. Si par hasard on lisait en Portugal Stendhal, on ne pourrait jamais le goûter : ce qui chez lui est exactitude, nous le considérerions stérilité. Des idées justes, exprimées dans une forme sobre, ne nous intéressent guère : ce qui nous charme, ce sont des émotions excessives, traduites avec un grand faste plastique de langage. (…) Nous sommes des hommes d’émotion, pas de raisonnement.» ([Carta ao Redactor da Revue Universelle (O Mandarim)],  Cartas Públicas, Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 153-54) (1)
A carta a que pertence este excerto é, tecnicamente, uma carta prefacial. Tem a data de 2 de Agosto de 1884, quando Eça tem 39 anos e 8 meses de idade. É cônsul em Bristol (Inglaterra), mas encontra-se em Lisboa; "viajava frequentemente para França (país e cultura que o fascinavam Victor Hugo era o seu herói e Balzac um dos seus mentores)", diz Nuno de Mello Bello.
Felizmente para nós, portugueses, também Eça não deixou de querer escrever sobre a maneira de ser português - a ela recorremos ora para afirmar os dons e as virtudes, ora para lhe apontar as fraquezas e as maleitas.
É inerente ao processamento cognitivo humano a categorização - ao mesmo tempo simplificadora e organizadora do pensamento - das pessoas e dos grupos: os portugueses, os franceses, os ingleses, os espanhóis, etc., etc., etc. Será que, na verdade, há uma maneira de ser portuguesa, tal como uma francesa, inglesa, ou qual seja?...
E, se a há, é fado?, é destino?, é genética?; é contextual?, é ambiental? (a tal ideia do jardim à beira mar plantado). Num outro plano, provavelmente mais interessante: é modificável?, é treinável?, é educável?
A Antropologia fala dos padrões de cultura e da personalidade de base...
Admitindo-a (apetece-me puxar, talvez abusivamente, a interrogação-desabafo com que Eça acaba a carta ao Redactor da Revue Universelle: «Contente? Não, senhor, resignado.»), o que podemos fazer dela, ou com ela?
Pensar que, como todas as tipificações simplificadoras que se fazem de todos os povos do mundo, a tipificação do Português é de quilate equivalente, que não é boa, nem má, e que simplesmente é assim mesma? Quando ganhamos (num Europeu de futebol, por exemplo), dedicamos-lhe loas; quando perdemos, carpimos-lhe o inevitável fado.
Entre os extremos, entre o oito e o oitenta não haverá mesmo espaço para o sábio exercício da Educação?


Palavras-chave: personalidade de base, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, ser português
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(1) Tradução livre:
«(...) Ela [a obra, O Mandarim] caracteriza precisamente, parece-me, a tendência mais natural, mais espontânea do espírito Português. (...) Pois, ainda que hoje toda a nossa juventude literária, e até mesmo alguns dos antepassados ​​escapados ao Romantismo, dedicam-se pacientemente a estudar a natureza, e fazem esforços pertinentes para pôr nos livros a maior quantidade possível de realidade viva, - nós ficamos aqui, neste canto ensolarado do mundo, muito idealistas no âmago e muito líricos. Nós adoramos, Senhor, banhar tudo no azul do céu; uma frase bonita sempre nos agradará mais do que uma noção exacta; a fabulosa Melusina (2), devoradora dos corações dos homens, sempre encantará a nossa incorrigível imaginação mais do que a muito humana Senhora Marnésse (3); e consideramos sempre a Imaginação e Eloquência como os dois sinais, os únicos verdadeiros sinais, do homem superior. Se por acaso se lesse Stendhal em Portugal, nunca ele seria apreciado: o que nele é rigor, nós considerá-lo-íamos esterilidade. As ideias justas, expressas de uma forma simples, dificilmente nos interessam: o que nos encanta é as emoções excessivas, traduzidos com grande pompa plástica na linguagem. (...) Nós somos homens de emoção, não razão.»
(2) Melusina é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.
(3) [Ainda] não sei bem quem é esta senhora. Eventualmente, confusão com Marneffe? Ver aqui.

terça-feira, 21 de junho de 2016

TORNAR-SE PESSOA - Ídolos. 01.

TORNAR-SE PESSOA
Ídolos. 01.
«Então, perante este céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar n’um enlevo, como um discipulo. E para sempre assim me conservei na vida.» (11, p. 482-483) (1)
Antero de Quental é cerca de 3 anos e meio mais velho do que Eça de Queirós. Eça terá 16 anos quando conhece Antero, como descreve neste maravilhoso texto da colectiva obra “Anthero de Quental: In Memoriam”(2); Antero terá 20 anos.
Esta ocorrência acontece na escadaria da Sé Nova de Coimbra.
Corre a Primavera de 1862, Eça tinha-se matriculado no curso de Leis da Universidade de Coimbra, em 14 de Outubro do ano anterior. É uma modalidade frequente do processo de socialização - quiçá, inevitável -, o que aconteceu a Eça de Queirós e que ele relata de forma tão sincera e humilde. Repentinamente ou pouco a pouco, a admiração, o fascínio, por um colega mais velho impõe-se, quantas vezes mais fortemente do que a nossa vontade consegue mandar.
Nos dias de hoje, a televisão, o cinema, a Internet, aumentaram exponencialmente as figuras com que nos identificamos, que podemos tomar para ídolos. Também a variedade de ocupações. Nos tempos de Eça não havia televisão e não havia cinema; a própria fotografia ainda era incipiente. Quanto às actividades, por exemplo, não havia desporto massificado como agora acontece, por exemplo, com o imperial futebol ou mesmo as outras modalidades desportivas.
Os ídolos formavam-se, essencialmente, a partir do contacto com os colegas mais velhos, os personagens da História e os heróis da Literatura. 
Não deixemos de ter em atenção que os processos psicológicos que desencadeiam e alimentam o fascínio e a admiração por um colega, ou amigo, mais velho (noutras vezes, é um familiar – pai, tio, primo, avô…), esses, quase absolutamente são os mesmos – os de Eça e os nossos. É que resultam directamente das necessidades de desenvolvimento pessoal e social dos seres gregários que somos.
Um pouco mais à frente no texto, na página seguinte, Eça escreve esta frase significativa:
“N'esse tempo elle era em Coimbra, e nos dominios da intelligencia, o Principe da Mocidade.”

Palavras-chave: ídolo, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização
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(1) 11 – Anthero de Quental. In Memoriam. Porto, Mathieu Lugan Editor, 1896.
(2) O texto de Eça de Queirós sobre Antero de Quental, "Um Génio Que Era um Santo" é um texto notável. Os editores desesperaram anos à espera que Eça, primeiro, o começasse; e, depois, lhe desse a forma final. O resultado é, no meu entender, sublime. (Eça de Queirós: Um Génio Que Era um Santo, in "Antero de Quental. In Memoriam", Lisboa, 1896.)

terça-feira, 14 de junho de 2016

FAMÍLIA - Relação pais-filhos. 01.

FAMÍLIA
Relação pais-filhos. 01.
«Os pequenos estão muito bons – muito quietos à mesa. Conversam, discutem, grulham, mas com a máxima serenidade. É o caso de empregar a velha expressão “nem parecem os mesmos”. O Bebert [Alberto] sobretudo é a própria mansidão. Não teve uma perrice, não fez um distúrbio. Ao jantar come com muito apetite, dá a sua opinião sobre os assuntos e lê o Temps alto, com convicção, numa voz de teatro. Tudo isto tem sido o resultado de firmeza e doçura. Comecei por lhes fazer um sério discurso – aquilo que nos quartéis se chama da “teoria”. Depois passei a algumas aplicações práticas provando que estava disposto a ser inexorável. Imediatamente reinou uma ordem deliciosa.» (01, p. 384)
Numa circunstância rara da vida de casal, Eça de Queiroz está em casa, em Paris, sozinho com os
O escritor com os dois filhos mais velhos: Maria e José Maria
filhos rapazes. Corre o ano de 1899, entrara 8 dias antes o mês de Agosto. A esposa Emília e a filha Maria estão fora, em Bourbonne-ls-Bains, em tratamentos para o reumatismo. Alberto – o Bebert -, o filho mais novo, tem 8 anos; os outros têm 11 e 9.
Sabemos, por senso-comum, que, mesmo em famílias em que ambos os pais estão regularmente presentes e em sintonia um com o outro, os filhos têm comportamentos diferentes quando estão só com um deles, seja por pouco ou muito tempo. No caso dos filhos de Eça de Queiroz, a figura habitualmente presente, que garante a estabilidade afectiva e os cuidados à prole, é a mãe.
Pelo que Eça diz, podemos pensar que os filhos seriam, como diz a gente do povo, “frescos”, traquinas, travessos. De notar é a intenção que o pai expressa à mãe de que o estilo educativo seja composto de “firmeza”, mas também de “doçura”.
Nem sempre o progenitor que se ocupa habitualmente com as crianças reage bem aos aparentes sucessos do outro progenitor, bastante mais ocasional na liderança dos cuidados educativos dispensados aos filhos. Quantas vezes pequenos desacordos, pontos de vista divergentes, conversas que ficam por acabar, são rastilho para  silenciosos, mas crescentes, desentendimentos entre o pai e a mãe, e, consequentemente, o enfraquecimento da tarefa educativa comum…
No caso de Eça e Emília, a reacção da mãe dos rapazes é notável, por isso, exemplar. Responde ela, como legenda a filha Maria, mais de 70 anos depois, “com um ligeiro tom de ironia muito terna”:
«Estimo imenso que eles (os pequenos) tenham juízo – pelas tuas cartas parece mesmo que é uma conversão – que espero encontrar em pleno vigor! Faz-me imensa ternura o Alberto lendo o Temps com voz de estertor! Coitadinho! Deus queira que o encontre com o seu narizinho sem restos do trambolhão. Maria quer para ti des caissons de baisers, d' amour, de tendresse! entrego! E ainda: Como estás de saúde?” (01, p. 385-386)

Palavras-chave: estilos educativos, relação pai-filho, relação pai-mãe
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(1) 01 – Eça de Queiroz entre os Seus, apresentado por sua filha – Cartas íntimas. Lello & Irmão Editores, Porto, 1974.

AFECTOS - O ódio, emoção negativa. 01.

AFECTOS
O ódio, emoção negativa. 01.
«O ódio é um sentimento negativo que nada cria e tudo esteriliza: - e, quem a ele se abandona, bem depressa vê consumidas na inércia as forças e as faculdades que a Natureza lhe dera para a acção. O ódio, quando impotente, não tendo outro objecto directo, nem outra esperança senão o seu próprio desenvolvimento - é uma forma da ociosidade. É uma ociosidade sinistra, lívida, que se encolhe a um canto, na treva.». (19, p. 77) (1)
Raiva "misturada" com medo em gravura do século XVIII.
É, vagamente, do tempo da escola primária, que me me lembro do aviso com que os mais velhos - professores, pais, avós, tios e vizinhos - tentavam inculcar nos mais novos, pela tradição, que a ociosidade é a mãe de todos os vícios. Nessa altura pensava tratar-se de uma expressão da cultura popular do nosso País, afinal, o mundo que eu conhecia. Hoje em dia, se procurarmos na Internet, é muito provável que as primeiras referência nos indiquem proveniência francesa: "L’oisiveté est la mère de tous les vices, mais aussi de toutes les vertus.", sendo a autoria atribuída a Alain, pseudónimo de Émile-Auguste Chartier (1868 - 1951). Irresistível, qual cereja que vem logo atrás, vem-nos à mente que no Livro do Desassossego, Bernardo Soares (Fernando Pessoa, 1888 - 1935) desabafe que "Deus é bom mas o diabo também não é mau". Não percamos de vista, por causa desta apreciação dicotómica da ociosidade, o pensamento de Eça de Queirós sobre o ódio, não sigamos atrás de mais cerejas, por atraentes que sejam.
Na verdade, bem mais interessante, do ponto de vista que nos interessa agora, é dizer qualquer coisa sobre a experiência da emoção do ódio e sobre a pedagogia de lidar com ele, a qual pede, tantas vezes, que das tripas se faça coração.
Eça de Queirós é autor do texto de que extraímos este excerto sob o nome João Gomes. O texto foi publicado na Revista Portugal, em Fevereiro de 1890, e tem a ver com o ultimato inglês, fresquinho, entregue oficialmente a Portugal em 11 de Janeiro deste ano. Portugal vive muito a quente a ameaça da velha aliada europeia. Talvez por isso Eça matize a caracterização do ódio com a condicionante "quando impotente" (*).
Ora, o que é verdadeiramente impressionante é encontrar um paralelismo entre o modo como o escritor fala do ódio e o modo como Darwin fala das emoções negativas, mesmo nos últimos parágrafos do seu notável livro sobre a expressão das emoções, que foi publicado em 1872:
«O facto de exprimirmos uma emoção através de sinais exteriores faz com que ela seja intensificada. A repressão, pelo contrário, de todos os sinais exteriores da emoção, na medida em que é possível, conduz a um atenuamento da mesma. Uma pessoa que não refreie os gestos violentos quando está furiosa, acaba por aumentar a sua fúria; quem não controla os sinais do medo, irá sentir ainda mais esse medo; e alguém que permanece passivo quando é esmagado pela dor, perde com isso a sua principal hipótese de recuperar a elasticidade mental.» (2)

Palavras-chave: ódio, ociosidade, emoções, fúria, medo, dor, elasticidade mental
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(*) No mesmo texto, poucas linhas antes, Eça escreve: «O ódio pode formar um factor na vida de um povo quando apaixonadamente incite e aqueça a actividade que prepara a desforra. Ora a desforra consiste em derrotar quem nos derrotou, humilhar quem nos humilhou».
(1) 19 – Reis, C. (coord.). Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal). Lisboa, INCM, 1995, p. 77)
(2) Darwin, C. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Lisboa, Relógio d' Água, 2006, p. 336

domingo, 12 de junho de 2016

TORNAR-SE PESSOA - Conhece-te a ti mesmo. 01.

TORNAR-SE PESSOA
Conhece-te a ti mesmo. 01.
«Agora uma coisa – ou antes um pedido. Ia mesmo escrever-lhe [a Ramalho Ortigão]
Ramalho e Eça
sobre isso. Pegue no Padre Amaro, e escreva sobre ele, com justiça, sem piedade, com uma severidade férrea – o seu juízo – e remeta-mo. Tenho absolutamente necessidade disto: mas nada de improvisos espirituosos, ou de fantasias, ou uma crítica à Planche – austera, carrancuda e salutar. – Eu que já agora – pertenço todo à arte
 – vou por um caminho que não sei qual é: é o bom, o sublime, o medíocre? Isolado no meu quarto, produzindo sem cessar, sem crítica externa, sem o critério alheio, abismado na contemplação de mim mesmo, pasmado às vezes do meu génio, sucumbindo outras sob a certeza da minha imbecilidade – arrisco-me a faire fausse route. É necessário que uma voz de fora me diga – olhe que o estilo que V. imagina admirável é simplesmente tolo: olhe que essa concepção do bem, do mal, das responsabilidades são falsas: olhe que esses processos levam à vulgaridade etc., etc., etc. Preciso conselhos, direcções, preciso conhecer-me a mim mesmo – para preservar e desenvolver o bom, evitar o mau, ou modificá-lo e disfarçá-lo: Mas há coisa mais difícil? Que se conheça a si mesmo – o homem que não tira os olhos de si mesmo, é quase impossível: anquilosa-se a gente num certo feitio moral, de que não sai. Diga-me V. portanto o que acha de bom e mau no Padre Amaro». (06, p. 134-135) (1)
Eça está à beira de completar 31 anos de vida, a carta é de 7 de Novembro de 1876. Em 1875 tinha sido publicada a 1.ª edição de O Crime do Padre Amaro, e agora o escritor prepara O Primo Basílio. Está em Newcastle (Inglaterra).
Trata-se de um excerto extenso que me apetece comentar dizendo simplesmente o seguinte: conhece-te a ti mesmo, claro que sim, e, como diz Eça, dificilmente conseguimos fazê-lo senão através dos outros. Fora disso, é a a inevitável e involuntária adesão a crenças, intuições, e outras subjectividades coercitivas, que nos limitam o pensamento e a visão esclarecida de nós mesmos e dos outros, por mais confiança que sintamos na nossa capacidade de pensar com distanciamento pessoal a realidade objectiva (ou deveria ter escrito "objectiva"?).

Permitam-me, afinal, mais duas ou três palavras sobre o conhecimento de nós mesmos:
a primeira, para dizer que, como tantas vezes, o que verdadeiramente importa - ao contrário da tradição que nos manda fazer o que nos disserem e não o que fizerem - não é que olhem para o que eu digo, mas para o que eu faço - e que mo digam, que mo apontem e apreciem criticamente, para que eu me descubra, me reveja, me reconheça e, se for caso disso, mude;
a segunda, é para dizer que, por muito determinados e independentes que sejamos, sentimo-nos sempre bem com o reconhecimento dos outros, mesmo que, presunçosos, o neguemos ou lhe sejamos indiferentes - neste caso, certamente denunciaremos que alguma coisa não vai bem no reino do equilíbrio pessoal interior;
a terceira, é para dizer o que, no fundo, todos sabemos: que o acto da criação é um acto essencialmente solitário, por muito que os outros, com o que dizem e com o que fazem, nos tragam preciosas achegas - cabe a cada um de nós a decisão, o jeito ou a sabedoria de ficarmos juntos ou afastarmo-nos, circunstancialmente, dos outros;
finalmente, que somos sempre através dos outros, a fazer lembrar a afirmação classicamente atribuída, nos manuais de Psicologia das nossas escolas, a Aristóteles: “O homem é um ser eminentemente social; o homem capaz de viver isoladamente, ou é um deus, ou é uma besta, mas não um ser humano”. Também Bachelard, nas palavras de José Bleger, dizia que pensamos sempre contra alguém; consecutivamente, Bleger vai mais longe: "é preciso acrescentar que também pensamos com alguém e para alguém". (2) Noutra conferência, diz ainda este autor: "O ser humano antes de ser pessoa é sempre um grupo, mas não no sentido de que pertence a um grupo, e sim no de que a sua personalidade é o grupo". (3)

Palavras-chave: autoconhecimento, eu, nós, outro, autoavaliação, grupo
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(1) 06 – Matos, A. Campos. Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008.
(2) Bleger, José. Temas de Psicologia, Entrevistas e Grupos. S. Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, Ltd.ª, 1980, p. 66)
(3) Bleger, José. Temas de Psicologia, Entrevistas e Grupos. S. Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, Ltd.ª, 1980, p. 66)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

AFECTOS - Expressão de sentimentos. 01.

AFECTOS
Expressão de sentimentos. 01.
A gente nunca exprime bem o que sente: as “nuances” de coração e sentimento são tão difíceis de definir! (01(1), p. 31)
Eça de Queiroz, fotografia de casamento.
Fotog., Photographia União, Porto, 1886. BN.
Não sei se as pessoas se arrependem de nunca terem sido capazes de dizer o que lhes ia (ou vai) na alma, ou se se arrependem de terem dito mais do que deviam ter dito… E os mal-entendidos, senhor!, os mal-entendidos!...
Uma enfermeira australiana, há poucos anos, ocupada nos cuidados paliativos, fez uma recolha das coisas que os pacientes lhe diziam - em jeito de balanço, eles falavam-lhe das coisas que lamentavam terem ou não terem feito na vida. Logo em terceiro lugar, imediatamente a seguir a desejarem terem sido mais autênticos, menos à medida do que os outros esperavam deles; e de não terem trabalhado tanto, vem o desejo de terem tido coragem para expressar os sentimentos.

Curiosamente, nos trabalhos monográficos que os meus alunos fazem, sobretudo quando entrevistam os avós ou outras pessoas idosas, quando lhes perguntam se há alguma coisa de que se arrependam na vida, a resposta mais comum vai no mesmo sentido: dizem que se arrependem das coisas que não fizeram na vida, não das que fizeram.
“A falar é que a gente se entende”, diz a gente do povo. Como fazer, então? Cultivando a experiência da conversa e do diálogo, não é? Pais com filhos, avós com netos, professores com alunos; amigos com amigos.
"De pequenino se torce o pé ao pepino". "O hábito faz o monge".
Para já, como notável exemplo da difícil expressão dos sentimentos, procuremos imaginar Eça de Queiroz, à beira dos 40 anos, homem (mais que) feito, ansioso por casar, a escrever assim à sua noiva Emília, onze anos mais nova do que ele:
“Tenho muitos defeitos, e ainda que felizmente o mundo não me “ressequiu”, nem me tornou “artificial” como ele geralmente torna todos os que vivem nele, ainda que conservo em mim, graças a Deus, bastante of human nature – falta-me todavia, receio, esse brilhante e formoso e quase divino entusiasmo da mocidade que doura e aquece tudo, e que é a mais deliciosa chama em que uma mulher pode deixar queimar à vontade o seu coração.
Falta-me, creio, esse entusiasmo – ou pelo menos os atritos do Mundo diminuíram-lhe a intensidade: e isto já não é uma pequena falta. Mas tenho ainda outras… Em todo o caso, é necessário que eu acabe esta carta “palradora”. (01(1), p. 30-1)

Palavras-chave: sentimento, afecto, comunicação, diálogo, mal-entendidos, mocidade
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(1) 01 - Eça de Queiroz entre os Seus, apresentado por sua filha – Cartas íntimas. Lello & Irmão Editores, Porto, 1974.