O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

quarta-feira, 22 de junho de 2016

CULTURA DE ORIGEM, CULTURA DE PERTENÇA - Ser português. Há uma maneira de ser português? 01.

A CULTURA DE ORIGEM, CULTURA DE PERTENÇA
Ser português. Há uma maneira de ser português? 01.
«Monsieur le Rédacteur de la Revue Universelle
(…) elle [a obra, O Mandarim] caractérise fidèlement, ce me semble, la tendance la plus naturelle, la plus spontanée de l’esprit portugais. Car, quoique aujourd’hui toute notre jeunesse littéraire, et même quelques-uns des ancêtres échappés du Romantisme, s’appliquent patiemment à étudier la nature, et font de constants efforts pour mettre dans les livres la plus grande somme de réalité vivante, nous sommes restés ici, dans ce coin ensoleillé du monde, très idéalistes au fond et très lyriques. Nous aimons passionnément, Monsieur, à tout envelopper dans du bleu ; une belle phrase nous plaira toujours mieux qu’une notion exacte ; la fabuleuse Mélusine, dévoratrice de cœurs d’hommes, charmera toujours nos imaginations incorrigibles bien plus que la très humaine Madame Marnésse ; et toujours nous considérerons la fantaisie et l’éloquence comme les deux signes, et les seuls vrais, de l’homme supérieur. Si par hasard on lisait en Portugal Stendhal, on ne pourrait jamais le goûter : ce qui chez lui est exactitude, nous le considérerions stérilité. Des idées justes, exprimées dans une forme sobre, ne nous intéressent guère : ce qui nous charme, ce sont des émotions excessives, traduites avec un grand faste plastique de langage. (…) Nous sommes des hommes d’émotion, pas de raisonnement.» ([Carta ao Redactor da Revue Universelle (O Mandarim)],  Cartas Públicas, Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 153-54) (1)
A carta a que pertence este excerto é, tecnicamente, uma carta prefacial. Tem a data de 2 de Agosto de 1884, quando Eça tem 39 anos e 8 meses de idade. É cônsul em Bristol (Inglaterra), mas encontra-se em Lisboa; "viajava frequentemente para França (país e cultura que o fascinavam Victor Hugo era o seu herói e Balzac um dos seus mentores)", diz Nuno de Mello Bello.
Felizmente para nós, portugueses, também Eça não deixou de querer escrever sobre a maneira de ser português - a ela recorremos ora para afirmar os dons e as virtudes, ora para lhe apontar as fraquezas e as maleitas.
É inerente ao processamento cognitivo humano a categorização - ao mesmo tempo simplificadora e organizadora do pensamento - das pessoas e dos grupos: os portugueses, os franceses, os ingleses, os espanhóis, etc., etc., etc. Será que, na verdade, há uma maneira de ser portuguesa, tal como uma francesa, inglesa, ou qual seja?...
E, se a há, é fado?, é destino?, é genética?; é contextual?, é ambiental? (a tal ideia do jardim à beira mar plantado). Num outro plano, provavelmente mais interessante: é modificável?, é treinável?, é educável?
A Antropologia fala dos padrões de cultura e da personalidade de base...
Admitindo-a (apetece-me puxar, talvez abusivamente, a interrogação-desabafo com que Eça acaba a carta ao Redactor da Revue Universelle: «Contente? Não, senhor, resignado.»), o que podemos fazer dela, ou com ela?
Pensar que, como todas as tipificações simplificadoras que se fazem de todos os povos do mundo, a tipificação do Português é de quilate equivalente, que não é boa, nem má, e que simplesmente é assim mesma? Quando ganhamos (num Europeu de futebol, por exemplo), dedicamos-lhe loas; quando perdemos, carpimos-lhe o inevitável fado.
Entre os extremos, entre o oito e o oitenta não haverá mesmo espaço para o sábio exercício da Educação?


Palavras-chave: personalidade de base, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, ser português
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(1) Tradução livre:
«(...) Ela [a obra, O Mandarim] caracteriza precisamente, parece-me, a tendência mais natural, mais espontânea do espírito Português. (...) Pois, ainda que hoje toda a nossa juventude literária, e até mesmo alguns dos antepassados ​​escapados ao Romantismo, dedicam-se pacientemente a estudar a natureza, e fazem esforços pertinentes para pôr nos livros a maior quantidade possível de realidade viva, - nós ficamos aqui, neste canto ensolarado do mundo, muito idealistas no âmago e muito líricos. Nós adoramos, Senhor, banhar tudo no azul do céu; uma frase bonita sempre nos agradará mais do que uma noção exacta; a fabulosa Melusina (2), devoradora dos corações dos homens, sempre encantará a nossa incorrigível imaginação mais do que a muito humana Senhora Marnésse (3); e consideramos sempre a Imaginação e Eloquência como os dois sinais, os únicos verdadeiros sinais, do homem superior. Se por acaso se lesse Stendhal em Portugal, nunca ele seria apreciado: o que nele é rigor, nós considerá-lo-íamos esterilidade. As ideias justas, expressas de uma forma simples, dificilmente nos interessam: o que nos encanta é as emoções excessivas, traduzidos com grande pompa plástica na linguagem. (...) Nós somos homens de emoção, não razão.»
(2) Melusina é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.
(3) [Ainda] não sei bem quem é esta senhora. Eventualmente, confusão com Marneffe? Ver aqui.

1 comentário:

  1. Ser português, n'Os Maias
    «Carlos encolheu os ombros: [falando com o avô, Afonso da Maia]
    - Se é que se pode chamar a isto trabalhar... Olhe aí para o chão. Veja esses destroços... Em quanto se trata de tomar notas, coligir documentos, reunir materiais, bem, lá vou indo. Mas quando se trata de pôr as ideias, a observação, numa forma de gosto e de simetria, dar-lhe cor, dar-lhe relevo, então... Então foi-se!
    - Preocupação peninsular, filho - disse Afonso, sentando-se ao pé da mesa, com o seu chapéu desabado na mão. - Desembaraça-te dela. É o que eu dizia noutro dia ao Craft, e ele concordava... O português nunca pode ser homem de ideias, por causa da paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a ideia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, mas salve-se a bela frase.
    - Questão de temperamento, disse Carlos. há seres inferiores, para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importante que a exactidão de um sistema... Eu sou desses monstros.
    - Diabo! então és um retórico...»

    (Eça de Queiroz, Os Maias, Lisboa, Guerra Paz, pp. 210-211)

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