O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

sábado, 13 de agosto de 2016

OS COMPORTAMENTOS - O riso 01.

OS COMPORTAMENTOS
O riso 01.
«O riso é a mais antiga e ainda mais terrível forma de crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta duma instituição, e a instituição alui-se; é a Bíblia que no-lo ensina sob a alegoria, geralmente estimada, das trombetas de Josué, em torno de Jericó. Há uma receita vulgar para produzir o riso: toma-se, por exemplo, um personagem augusto; puxa-se-lhe a língua até ao umbigo; estiram-se-lhe as orelhas numa extensão asinina; rasga-se-lhe a boca até à nuca; põe-se-lhe um chapéu de bicos de papel: bate-se o tambor e chama-se o público.» (1, p. 168)
Ramalho Ortigão, por Felizardo
Não será motivo de polémica discussão dizer-se que rir faz bem à saúde, e Eça de Queiroz também escreveu sobre essa espécie de riso. Onde há riso há alegria, há satisfação, há bem-estar.
As crianças sabem por instinto que, quando os pais descobrem as marotices que elas fazem, um sorriso carinhoso tem boas hipóteses de aplacar o aborrecimento ou a zanga dos pais; e se as crianças conseguirem fazer os pais rirem-se, melhor ainda. Sobre esta força do riso falo noutro escrito de Eça que junto a este está.
Há um poeta ainda recente que canta que a cantiga é uma arma; mais velho, bem mais velho, o escritor diz-nos praticamente o mesmo acerca do riso. O comportamento do riso tem uma relação muito íntima com o exercício da inteligência. É por isso que Eça diz que o riso é terrível - é porque é eficaz, atinge o âmago do entendimento, é convincente. Atinge sem fazer uso de formas de crítica mais rudes, mais próximas da agressão directa, que tendem a despoletar reacções de defesa, bastante menos pensadas, mais próximas da reacção agressiva directa, do tipo "olho por olho, dente por dente", e tomadas logo como reacções de legítima defesa. Quer dizer, o riso terá mais chances de inibir a reacção agressiva da pessoa visada.
Para Eça, o riso que neste trecho ele descreve - a receita, como ele diz - é uma forma simples de riso, de fazer rir. Na continuação da sua escrita ele, a propósito de Ramalho Ortigão, vai discorrer sobre o riso como arma de intervenção e crítica social e política, em formas cada vez mais contundentes. Assume que concorda com um “grande pintor de Paris”, que diz que a multidão vê falso, e que o que Ramalho Ortigão escrevia nas Farpas, com os processos do riso, “era obrigar a multidão a ver verdadeiro”. (1, p. 169)
Não quero deixar de assinalar aqui que, lá bem para a frente, no longo elogio a Ramalho Ortigão a que fui buscar o excerto-gatilho deste discorrer, Eça explicita matizes interessantes acerca do riso, que valerá a pena olhar e conhecer nouros apontamentos sobre o comportamento do riso. Só para justificar um pouco o que acabo de dizer: algumas longas páginas depois da que aqui me servi, diz ele: “Nunca o vi [a Ramalho Ortigão] dar uma gargalhada; às vezes dá uma boa e sã risada, e raras vezes o vejo sem um sorriso”. (1, p. 178) Não se fica com a ideia de perceber um pouco melhor as diferenças comportamentais ligadas às gargalhadas, às risadas e aos sorrisos?

Palavras-chave: riso, crítica social, crítica política, intervenção social, intervenção política
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008.

1 comentário:

  1. Palavras do ficcionista Eça
    «- Com efeito, disse Carlos rindo -, é uma orgia grandiosa, lembra Heliogábalo e o Conde de Orsay...
    Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na Europa, em qualquer civilização? Sempre queria ver que se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do Grand-Treize, ou em Londres, naquela correcta e maçuda sensaboria do Bristol! O que ainda tornava a vida tolerável era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem requintado já não ri - sorri regeladamente, lividamente. Só nós aqui, neste canto do mundo bárbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora - a barrigada de riso!...»

    (Eça de Queiroz, Os Maias, Lisboa, Guerra & Paz, p. 568)

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