O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

sábado, 2 de julho de 2016

A VISÃO DO MUNDO - As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.

A VISÃO DO MUNDO
As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.
«Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças, que tem os seus clássicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e génios – em nada inferior à nossa literatura de homens sisudos. Aqui apenas o bebé começa a soletrar, possui logo os seus livros especiais: são obras adoráveis, que não contêm mais de dez ou doze páginas, intercaladas de estampas, impressas em tipo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assunto é uma história, em seis ou sete frases, e decerto menos complicada e dramática que O Conde de Monte-Cristo ou Nana; mas, enfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catástrofe.
D. Emilia de Castro Pamplona, esposa do escritor e os quatro filhos
Tal é, para dar um exemplo, a lamentável tragédia dos Três Velhos Sábios de Chester: eram muitos velhos e muito sábios; e para discutirem coisas da sua sabedoria, meteram-se dentro de uma barrica; mas um pastor que vinha a correr atrás de uma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os três velhos sábios de Chester!
Como estas há milhares: a Cavalgada de João Gilpin é uma obra de génio.
Depois, quando o bebé chega aos seus oito ou nove anos, proporciona-se-lhe outra literatura. Os sábios, a barrica, os trambolhões, já o não interessariam; vêm então as histórias de viagens, de caçadas, de naufrágios, de destinos fortes, a salutar crónica do triunfo, do esforço humano sobre a resistência da Natureza.
Tudo isto é contado numa linguagem simples, pura, clara – e provando sempre que na vida o êxito pertence àqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio, e bondade. Raras vezes se leva o espírito da criança para o país do maravilhoso – não há nesta literatura nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se fala de anjos ou de fadas, é de modo que a criança, naturalmente, venha a rir-se desse lindo sobrenatural, e a considerá-lo do género «boneco», com os seus próprios carneirinhos de algodão.
O que se faz às vezes é animar de uma vida fictícia os companheiros inanimados da infância: as bonecas, os polichinelos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existência de uma boneca honesta e infeliz; ou os sofrimentos por que passou em campanha, numa guerra longínqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta literatura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a criança – mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e misérias atravessaram aqueles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas baionetas torcidas ela todos os dias endireita com os dedos: e assim pode ficar depositado num espírito de criança um justo horror da guerra.
As lições morais que se dão deste modo são inumeráveis, e tanto mais fecundas quanto saem da acção e da existência dos seres que ela melhor conhece – os seus bonecos.
Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze anos: popularizações de ciências; descrições dramatizadas do universo; estudos cativantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a história; e, enfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crua ponha no espírito tenro securas de misantropia, nem uma falsa idealização produza uma sentimentalidade mórbida.
É no Natal principalmente que esta literatura floresce.» (O Natal - A "Literatura de Natalç" para crianças,  Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias), Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 121-22) (1)
O texto onde fui buscar este (longo) excerto tem a data de 9 de Fevereiro de 1881. Eça de Queirós só será pai 6 anos depois.
Poderia eu ter optado por fazer uma transcrição mais pequena, mais directamente focada no tema da educação familiar e social do assunto das guerras entre os povos? Poderia, mas, como agora se tornou moda dizer até à exaustão, não seria a mesma coisa: que lição de pedagogia de Eça de Queirós sobre as leituras para crianças, ao longo das várias etapas do seu desenvolvimento!
Num tempo em que os sofisticados jogos outros programas informáticos invadiram imperialmente as horas de trabalho e de lazer das crianças, e colonizaram os seus interesses e motivações, o que valem estas dissertações e apreciações do notável escritor?
Para mim, valem muito. Repare-se como Eça de Queirós mostra uma sensibilidade notável para a evolução dos afectos, das motivações, das necessidades pessoais, das etapas do desenvolvimento cognitivo e da fantasia; e, finalmente, da aprendizagem social das crianças.


Palavras-chave: desenvolvimento pessoal, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, literatura infantil, visão do mundo
____________________

Sem comentários:

Enviar um comentário