O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

domingo, 12 de junho de 2016

TORNAR-SE PESSOA - Conhece-te a ti mesmo. 01.

TORNAR-SE PESSOA
Conhece-te a ti mesmo. 01.
«Agora uma coisa – ou antes um pedido. Ia mesmo escrever-lhe [a Ramalho Ortigão]
Ramalho e Eça
sobre isso. Pegue no Padre Amaro, e escreva sobre ele, com justiça, sem piedade, com uma severidade férrea – o seu juízo – e remeta-mo. Tenho absolutamente necessidade disto: mas nada de improvisos espirituosos, ou de fantasias, ou uma crítica à Planche – austera, carrancuda e salutar. – Eu que já agora – pertenço todo à arte
 – vou por um caminho que não sei qual é: é o bom, o sublime, o medíocre? Isolado no meu quarto, produzindo sem cessar, sem crítica externa, sem o critério alheio, abismado na contemplação de mim mesmo, pasmado às vezes do meu génio, sucumbindo outras sob a certeza da minha imbecilidade – arrisco-me a faire fausse route. É necessário que uma voz de fora me diga – olhe que o estilo que V. imagina admirável é simplesmente tolo: olhe que essa concepção do bem, do mal, das responsabilidades são falsas: olhe que esses processos levam à vulgaridade etc., etc., etc. Preciso conselhos, direcções, preciso conhecer-me a mim mesmo – para preservar e desenvolver o bom, evitar o mau, ou modificá-lo e disfarçá-lo: Mas há coisa mais difícil? Que se conheça a si mesmo – o homem que não tira os olhos de si mesmo, é quase impossível: anquilosa-se a gente num certo feitio moral, de que não sai. Diga-me V. portanto o que acha de bom e mau no Padre Amaro». (06, p. 134-135) (1)
Eça está à beira de completar 31 anos de vida, a carta é de 7 de Novembro de 1876. Em 1875 tinha sido publicada a 1.ª edição de O Crime do Padre Amaro, e agora o escritor prepara O Primo Basílio. Está em Newcastle (Inglaterra).
Trata-se de um excerto extenso que me apetece comentar dizendo simplesmente o seguinte: conhece-te a ti mesmo, claro que sim, e, como diz Eça, dificilmente conseguimos fazê-lo senão através dos outros. Fora disso, é a a inevitável e involuntária adesão a crenças, intuições, e outras subjectividades coercitivas, que nos limitam o pensamento e a visão esclarecida de nós mesmos e dos outros, por mais confiança que sintamos na nossa capacidade de pensar com distanciamento pessoal a realidade objectiva (ou deveria ter escrito "objectiva"?).

Permitam-me, afinal, mais duas ou três palavras sobre o conhecimento de nós mesmos:
a primeira, para dizer que, como tantas vezes, o que verdadeiramente importa - ao contrário da tradição que nos manda fazer o que nos disserem e não o que fizerem - não é que olhem para o que eu digo, mas para o que eu faço - e que mo digam, que mo apontem e apreciem criticamente, para que eu me descubra, me reveja, me reconheça e, se for caso disso, mude;
a segunda, é para dizer que, por muito determinados e independentes que sejamos, sentimo-nos sempre bem com o reconhecimento dos outros, mesmo que, presunçosos, o neguemos ou lhe sejamos indiferentes - neste caso, certamente denunciaremos que alguma coisa não vai bem no reino do equilíbrio pessoal interior;
a terceira, é para dizer o que, no fundo, todos sabemos: que o acto da criação é um acto essencialmente solitário, por muito que os outros, com o que dizem e com o que fazem, nos tragam preciosas achegas - cabe a cada um de nós a decisão, o jeito ou a sabedoria de ficarmos juntos ou afastarmo-nos, circunstancialmente, dos outros;
finalmente, que somos sempre através dos outros, a fazer lembrar a afirmação classicamente atribuída, nos manuais de Psicologia das nossas escolas, a Aristóteles: “O homem é um ser eminentemente social; o homem capaz de viver isoladamente, ou é um deus, ou é uma besta, mas não um ser humano”. Também Bachelard, nas palavras de José Bleger, dizia que pensamos sempre contra alguém; consecutivamente, Bleger vai mais longe: "é preciso acrescentar que também pensamos com alguém e para alguém". (2) Noutra conferência, diz ainda este autor: "O ser humano antes de ser pessoa é sempre um grupo, mas não no sentido de que pertence a um grupo, e sim no de que a sua personalidade é o grupo". (3)

Palavras-chave: autoconhecimento, eu, nós, outro, autoavaliação, grupo
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(1) 06 – Matos, A. Campos. Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008.
(2) Bleger, José. Temas de Psicologia, Entrevistas e Grupos. S. Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, Ltd.ª, 1980, p. 66)
(3) Bleger, José. Temas de Psicologia, Entrevistas e Grupos. S. Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, Ltd.ª, 1980, p. 66)

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