O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

terça-feira, 14 de junho de 2016

AFECTOS - O ódio, emoção negativa. 01.

AFECTOS
O ódio, emoção negativa. 01.
«O ódio é um sentimento negativo que nada cria e tudo esteriliza: - e, quem a ele se abandona, bem depressa vê consumidas na inércia as forças e as faculdades que a Natureza lhe dera para a acção. O ódio, quando impotente, não tendo outro objecto directo, nem outra esperança senão o seu próprio desenvolvimento - é uma forma da ociosidade. É uma ociosidade sinistra, lívida, que se encolhe a um canto, na treva.». (19, p. 77) (1)
Raiva "misturada" com medo em gravura do século XVIII.
É, vagamente, do tempo da escola primária, que me me lembro do aviso com que os mais velhos - professores, pais, avós, tios e vizinhos - tentavam inculcar nos mais novos, pela tradição, que a ociosidade é a mãe de todos os vícios. Nessa altura pensava tratar-se de uma expressão da cultura popular do nosso País, afinal, o mundo que eu conhecia. Hoje em dia, se procurarmos na Internet, é muito provável que as primeiras referência nos indiquem proveniência francesa: "L’oisiveté est la mère de tous les vices, mais aussi de toutes les vertus.", sendo a autoria atribuída a Alain, pseudónimo de Émile-Auguste Chartier (1868 - 1951). Irresistível, qual cereja que vem logo atrás, vem-nos à mente que no Livro do Desassossego, Bernardo Soares (Fernando Pessoa, 1888 - 1935) desabafe que "Deus é bom mas o diabo também não é mau". Não percamos de vista, por causa desta apreciação dicotómica da ociosidade, o pensamento de Eça de Queirós sobre o ódio, não sigamos atrás de mais cerejas, por atraentes que sejam.
Na verdade, bem mais interessante, do ponto de vista que nos interessa agora, é dizer qualquer coisa sobre a experiência da emoção do ódio e sobre a pedagogia de lidar com ele, a qual pede, tantas vezes, que das tripas se faça coração.
Eça de Queirós é autor do texto de que extraímos este excerto sob o nome João Gomes. O texto foi publicado na Revista Portugal, em Fevereiro de 1890, e tem a ver com o ultimato inglês, fresquinho, entregue oficialmente a Portugal em 11 de Janeiro deste ano. Portugal vive muito a quente a ameaça da velha aliada europeia. Talvez por isso Eça matize a caracterização do ódio com a condicionante "quando impotente" (*).
Ora, o que é verdadeiramente impressionante é encontrar um paralelismo entre o modo como o escritor fala do ódio e o modo como Darwin fala das emoções negativas, mesmo nos últimos parágrafos do seu notável livro sobre a expressão das emoções, que foi publicado em 1872:
«O facto de exprimirmos uma emoção através de sinais exteriores faz com que ela seja intensificada. A repressão, pelo contrário, de todos os sinais exteriores da emoção, na medida em que é possível, conduz a um atenuamento da mesma. Uma pessoa que não refreie os gestos violentos quando está furiosa, acaba por aumentar a sua fúria; quem não controla os sinais do medo, irá sentir ainda mais esse medo; e alguém que permanece passivo quando é esmagado pela dor, perde com isso a sua principal hipótese de recuperar a elasticidade mental.» (2)

Palavras-chave: ódio, ociosidade, emoções, fúria, medo, dor, elasticidade mental
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(*) No mesmo texto, poucas linhas antes, Eça escreve: «O ódio pode formar um factor na vida de um povo quando apaixonadamente incite e aqueça a actividade que prepara a desforra. Ora a desforra consiste em derrotar quem nos derrotou, humilhar quem nos humilhou».
(1) 19 – Reis, C. (coord.). Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal). Lisboa, INCM, 1995, p. 77)
(2) Darwin, C. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Lisboa, Relógio d' Água, 2006, p. 336

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