O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

domingo, 21 de agosto de 2016

Eça de Queiroz - O que pede o compromisso do casamento

A PAIXÃO, O NAMORO, E O CASAMENTO
Casamento. 03. - O que pede o compromisso do casamento.
«Duas almas que se juntam para sempre, e que têm individualidades diferentes, não podem jamais tornar a ter interesses diferentes». (1, carta de 12Out1885)
Uma aproximação ao casamento de Eça e Emília.
Como seriam as pessoas desse tempo?...
Um casamento nas Lapas, Torres Novas , em 28Set1898,
Noivos à saída da Igreja de N.ª Sr.ª da Graça.
Mãe e irmã mais nova compõem o véu da noiva.
A filha mais velha de Eça de Queiroz e Emília Castro, Maria, com a ajuda do irmão António, publica em 1949, em reacção a tanto que se dissera - distorcidamente e erradamente, na opinião dos filhos - cerca de 4 anos antes, por ocasião da celebração do centenário do nascimento do pai, e com o objectivo de esclarecer e corrigir o que chegam a claramente designar como «tanta infâmia», algumas cartas trocadas entre os pais, para mostrar «um grande coração [de Eça de Queiroz] , a família e os amigos e ainda toda a pobreza e a miséria que lhe bateu à porta.» (1)
Trata-se de uma publicação deliciosa, "isenta" como são isentas as apreciações carinhosas, feitas com base na memória, de filhos que muito amaram os seus pais. Maria tinha 13 anos quando a levaram junto do leito onde viu o pai pela última vez, já sabedora do que lhe tinha acontecido. A mãe Emília viveu até 1934. Assim, passaram mais de 40 anos sobre a morte do pai, e mais de 10 no que diz respeito à mãe, quando as cartas são publicadas - 40 anos, a distância temporal entre a intensidade emocional de uma jovem adolescente e uma senhora que muito, entretanto, amadureceu.
Com os olhos de coruja que a tradição entrega às boas mães, Maria comenta, então, o pensamento do pai da seguinte maneira:
«Reconhece a cada um o direito de ter gostos diversos, "individualidades diferentes" - mas o que nunca mais poderão ter são "interesses diferentes".» (2)
 O que pede, na verdade, o compromisso do casamento? O casamento é sempre um contrato. Um contrato com disposições que estabelecem direitos e deveres.
Noutras entradas desta publicação apresento outros pensamentos de Eça sobre o casamento, dele continuando a falar a Emília, mas também aos amigos. O de agora refere-se ao momento que sempre deve acontecer, seja no século XIX, XX ou XXI - o esclarecimento das condições de contrato entre as partes contratantes.
Bem, este escrito não é um ensaio sobre a instituição do casamento, é só sobre o casamento de Eça de Queiroz. Essencialmente, é um casamento feito segundo os cânones, à época, da Igreja Católica. O casamento terá lugar no dia 10 de Fevereiro de 1886, no oratório do solar de Santo Ovídeo, pertença dos Condes de Resende. Que disseram eles em voz alta, perante o testemunho da família e convidados presentes, e sob orientação do padre celebrante? Disseram o mesmo que dizem os casais nas mesmas católicas igrejas?
O que quereria mesmo dizer, nas palavras de Eça, nunca mais individualidades diferentes ter interesses diferentes? E o que quererá isso dizer nos dias de hoje?
Numa canção de 1990, que continua a ser muito trauteada, Rui Veloso canta estes versos de Carlos Tê:
«Mas tu não ficaste, nem meia hora.
Não fizeste um esforço para gostar e foste embora.
Contigo aprendi uma grande lição.
Não se ama alguém que não ouve a mesma canção.»
Que terão estes versos a ver com a afirmação que, a quente, em pleno período de noivado, o maduro senhor faz à nitidamente mais jovem senhora?
Entretanto, oficialmente, à beira do altar, o que as testemunhas do compromisso de união ouvem é o seguinte:
«Eu (dizer o nome do noivo)
Prometo a ti, (dizer o nome da niova)
Ser-te fiel até ao fim
Amar-te como a mim
E respeitar-te assim
Na alegria e na tristeza
Na riqueza e pobreza
Na saúde e na doença
Todos os dias da nossa vida.»
Foram estas palavras que as testemunhas ouviram Eça declarar à pessoa com quem publicamente contraía matrimónio na cerimónia do pequeno templo religioso? Como casa - sim, como casa - uma declaração assim com as diferenças tão claramente vincadas na afirmação do escritor noivo?
Talvez este apontamento devesse acabar por aqui, para que o foco de reflexão a que ele quer levar não se perca; mas não resisto a chamar ainda a atenção para um aspecto a que sou compelido a pensar em resultado dada sua tão difícil e preocupante presença nas circunstâncias actuais dos confrontos entre culturas e religiões.
Numa carta que escreve ao «amigo sublimemente indiscreto», em 30 de Agosto de 1885, de Bristol, Eça de Queiroz expressa-se assim:
«aí vai a carta [para a mãe de Emília e do próprio amigo, o conde de Resende]; e ela tem de resto a grande, grandíssima vantagem de legitimar desde já as coisas, torná-las oficiais, e permitir portanto que tua irmã e eu nos escrevamos de vez em quando pour nous envoyer un petit salut d'amitié. Porque seria fantástico que permanecêssemos todo este tempo num silêncio solene - como se faz em países muçulmanos; e ainda em países muçulmanos, os fiancés correspondem-se por meio de ramos de flores.» (4, carta de 30Ago1885) 
 De Agosto a Outubro, da escrita ao amigo indiscreto à noiva, o noivo caminha do imaginado silêncio contemplativo para o ansioso e reclamativo protesto de notícias constantes, diárias. No rol das coisas reclamadas, o noivo não pede apenas palavras amorosas e confissão de sonhos:
«Ontem o papel acabou-se-me materialmente - quando eu lhe ia falar de coisas práticas. Porque, é verdade, nunca ainda conversámos sobre coisas práticas. Eu chamo coisas práticas certos detalhes como a época do nosso casamento, etc.» (5, carta de 14Out1885)
Palavras-chave: casamento, marriage, noivado, contrato de casamento, marriage contract
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 418.
(2) Eça de Queiroz, Eça de Queiroz entre os seus, apresentado por sua filha, Cartas Íntimas, Lisboa, Caminho, 2012, p. 23.
(3) A. Campos Matos, Eça de Queiroz, uma Biografia, V Cronologia, Porto, Edições Afrontamento, 2009.
(4) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 393.
(5) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 420.

1 comentário:

  1. «[Carlos da Maia] Ergueu-se, abalado. E então ali, sob essas árvores desfolhadas, onde durante o verão, quando elas se enchiam de sombra e de murmúrio, ele passeara com Maria, esposa eleita da sua vida - Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que dele descendessem lhe permitiam em verdade casar com ela...»
    Eça de Queiroz, Os Maias, Lisboa, Guerra Paz, 2015, p. 434)

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