O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

AFECTOS - A amizade, um sentimento especialmente saboroso. 01.

AFECTOS
A amizade, um sentimento especialmente saboroso. 01.
«bavarder com aqueles por quem se tem amizade é o maior lucro que da amizade se tira». (19, p. 77) (1)
Bavarder quer dizer conversar, falar, bater um papo - descomprometidamente, o que vier ao fio livre
Jaime Batalha Reis
do pensamento; e abundantemente, é falar muito.
Eça regista assim esta ideia na fase em que ansiosamente procura intensificar a troca de cartas com a sua muito recente noiva, logo após receber do Porto - ele está em Londres - o consentimento da Condessa de Resende, mãe de Emília, para que noivassem, senhora que explicitamente reconhecia:
«as boas qualidades e merecimento de V. Ex.ª, vendo além disso minha filha muito satisfeita [...] não posso deixar de o aprovar, esperando que Deus os abençoará.» (2)
O valor de "o maior lucro" para a conversa descomprometia e abundante com os amigos não é uma atribuição vã que Eça de Queiroz declame na vertigem poética de noivo apaixonado.
Não esqueçamos que ele é um noivo tardio, senhor de sentimentos amadurecidos na experiência pessoal e na reflexão passada aos seus escritos.
Um dos seus mais queridos, profundos e leais amigos, Jaime Batalha Reis, na Introdução que escreve, em 1903, às "Prosas Bárbaras", conta-nos um muito significativo episódio do bavarder em que Eça tanto se empenhava e com que se deliciava, teria Eça 21 ou 22 anos; Jaime, 19 ou 20; e Salomão, 24 ou 25:
«Uma noite, no Verão de 1867 ou 1868, depois de cear, o Eça de Queiroz, o Salomão Saragga e eu, fomos de passeio, conversando, até Belém. A noite estava muito quente. Havia uma grande claridade de lua cheia. Seriam umas duas horas da madrugada quando chegámos à praia da Torre. Quase varado na areia, havia um barco. Metemo-nos la dentro. A maré enchente fez-nos flutuar. Aí continuámos a nossa conversação até que o dia apareceu e o sol se levantou por detrás da casaria e dos altos de Lisboa. Desembarcámos então e dirigimo-nos para Belém, com fome, em busca de uma Taberna ou Restaurante. Queríamos almoçar ali mesmo, continuando, à beira do rio, a nossa discussão.»
Eça de Queiróz partira, em final de Dezembro de 1866 para Évora, onde foi dirigir o jornal de oposição ao Governo, o "Distrito de Évora" e regressara a Lisboa, a casa dos pais, em 2 de Agosto de 1867. Em 20 de Dezembro o Diário de Notícias publica o anúncio seguinte: «O distinto académico o Sr. Eça de Queiroz  vai estabelecer-se como advogado na Praça D. Pedro, 26, 4.º andar [em Lisboa]» (3).
De que falariam eles, abundantemente, nas suas conversas?... De que falam os amigos?...
Concretamente, de que falaram os três embarcados naquela noite toda?...
Desta e de outras conversas, Jaime Batalha Reis confessa, na Introdução, cerca de 3 anos após a morte do amigo, que lamenta não ter guardado registo do tanto que escreviam nos papéis e nas paredes nestes encontros. Especificamente do encontro de "marinheiros", felizmente, consegue reproduzir de memória o problema que criaram enquanto matavam a fome. O Malheiro de que falam é o amigo, coitado, à porta de quem bateram por volta das cinco horas da manhã a pedir que lhes desenrascasse dinheiro para poderem ir matar a fome; ele deu-lhes três moedas de cinco tostões.
O enunciado do problema:
Cristo deu-nos o amor,
Robespierre a liberdade;
Malheiro deu-nos três pintos:
Qual deles deu a verdade?
Diz ainda Batalha Reis, a fechar a memória deste episódio escreve:
«Almoçando, o Eça de Queiroz e eu glosámos e resolvemos o problema em quatro décimas, cantadas ali logo, ao acompanhamento do Fado que continuava a ouvir-se gemer na cozinha do rés-do-chão. Perderam-se estas décimas que com efeito sobrescritámos para o Lourenço Malheiro, e duas das quais, escritas pelo Eça de Queiroz, eram de uma graça cintilante.»

Palavras-chave: amizade, friendship, amigos, friends, conversar, talk, Jaime Batalha Reis
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 390.
(2) Eça de Queiroz, "Eça de Queiroz entre os seus, apresentado por sua filha, Cartas Íntimas", Lisboa, Caminho, 2012, p. 23.
(3) A. Campos Matos, "Eça de Queiroz, uma Biografia", V Cronologia, Porto, Edições Afrontamento, 2009.

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