O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

terça-feira, 21 de junho de 2016

TORNAR-SE PESSOA - Ídolos. 01.

TORNAR-SE PESSOA
Ídolos. 01.
«Então, perante este céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar n’um enlevo, como um discipulo. E para sempre assim me conservei na vida.» (11, p. 482-483) (1)
Antero de Quental é cerca de 3 anos e meio mais velho do que Eça de Queirós. Eça terá 16 anos quando conhece Antero, como descreve neste maravilhoso texto da colectiva obra “Anthero de Quental: In Memoriam”(2); Antero terá 20 anos.
Esta ocorrência acontece na escadaria da Sé Nova de Coimbra.
Corre a Primavera de 1862, Eça tinha-se matriculado no curso de Leis da Universidade de Coimbra, em 14 de Outubro do ano anterior. É uma modalidade frequente do processo de socialização - quiçá, inevitável -, o que aconteceu a Eça de Queirós e que ele relata de forma tão sincera e humilde. Repentinamente ou pouco a pouco, a admiração, o fascínio, por um colega mais velho impõe-se, quantas vezes mais fortemente do que a nossa vontade consegue mandar.
Nos dias de hoje, a televisão, o cinema, a Internet, aumentaram exponencialmente as figuras com que nos identificamos, que podemos tomar para ídolos. Também a variedade de ocupações. Nos tempos de Eça não havia televisão e não havia cinema; a própria fotografia ainda era incipiente. Quanto às actividades, por exemplo, não havia desporto massificado como agora acontece, por exemplo, com o imperial futebol ou mesmo as outras modalidades desportivas.
Os ídolos formavam-se, essencialmente, a partir do contacto com os colegas mais velhos, os personagens da História e os heróis da Literatura. 
Não deixemos de ter em atenção que os processos psicológicos que desencadeiam e alimentam o fascínio e a admiração por um colega, ou amigo, mais velho (noutras vezes, é um familiar – pai, tio, primo, avô…), esses, quase absolutamente são os mesmos – os de Eça e os nossos. É que resultam directamente das necessidades de desenvolvimento pessoal e social dos seres gregários que somos.
Um pouco mais à frente no texto, na página seguinte, Eça escreve esta frase significativa:
“N'esse tempo elle era em Coimbra, e nos dominios da intelligencia, o Principe da Mocidade.”

Palavras-chave: ídolo, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização
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(1) 11 – Anthero de Quental. In Memoriam. Porto, Mathieu Lugan Editor, 1896.
(2) O texto de Eça de Queirós sobre Antero de Quental, "Um Génio Que Era um Santo" é um texto notável. Os editores desesperaram anos à espera que Eça, primeiro, o começasse; e, depois, lhe desse a forma final. O resultado é, no meu entender, sublime. (Eça de Queirós: Um Génio Que Era um Santo, in "Antero de Quental. In Memoriam", Lisboa, 1896.)

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