O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

domingo, 24 de julho de 2016

FALAR E ESCREVER, DE SI E PARA OS OUTROS É preciso saber palavras caras para escrever bem? 01.

FALAR E ESCREVER, DE SI E PARA OS OUTROS
É preciso saber palavras caras para escrever bem? 01.
«só os termos simples, usuais, banais, correspondendo às coisas, ao sentimento, à modalidade simples, é que não envelhecem. O homem mentalmente pensa em resumo, e com simplicidade; nos termos mais banais e usuais: termos complicados, são já um esforço de literatura: — e quanto menos literatura se puser numa obra de arte, mais ela durará, por isso mesmo, que a linguagem literária envelhece e só a humana perdura.» (Eça de Queiroz, A Correspondência de Fradique Mendes (Memórias e Notas), Edição Crítica das Obras de Eça de Queiroz. Lisboa, IN-CM, 2014, p. 348)
Saavedra Machado, Eça de Queiroz, In Memoriam,
2,ª ed., Coimbra, Atlântida, 1947
O livro "Doze segredos da Língua Portuguesa, a nossa língua como nunca a pensou ver" é muito interessante. Ao nono segredo, o autor do livro, Marco Neves, titula claramente: O português não está a ir desta para melhor. No que escreve abala a "certeza", adquirida por velhos processos de construção de ideias estereotipadas e preconceituosas, de que a Língua Portuguesa vai de mal a pior. Podemos todos estar descansados:a língua portuguesa está bem e recomenda-se.
Eu entendo o que vai na cabeça das pessoas. Ora, também eu fico às vezes à beira de perder a paciência com os meus alunos que insistem comigo que não percebem as minhas dúvidas, é que, segundo eles, não é complicado eu "ver aquela cena" que eles imaginam estar a pôr ali mesmo à frente dos meus olhos; que não insista eu qque eles entendam porque eles "não fazem a mínima"; que me cumprimentam com o brevíssimo «'tá tudo?...»; e as abreviaturas mas mensagens de texto nos telemóveis pedem quase manual de decifração. Também, é verdade, era exasperante, e agora tornou-se corriqueiro, nas aulas, a bem batida pergunta, «Temos de escrever isso?...»
Nunca se escreveu tanto como agora... Qual é, então, mais inimigo da expressão da língua - é a falta de vocabulário, é a preguiça de escrever, ou é a pressa de comunicar? Lembro-me que quando me apresentei, no Instituto Superior Técnico, ao Professor acompanhante da minha tese de mestrado, ele logo me avisou: «Não leio email com mais de 3 ou 4 linhas, só de ver que são mais fico logo sem vontade de as ler, por isso, veja como me escreve. É que não tenho tempo para mais.»
Não ter tempo?... Há poucos dias, Jorge Barros, o notável mestre da Fotografia das coisas, dos locais e das pessoas, alterou a hora do encontro que tinha marcado comigo, o nosso primeiro encontro. Antecipou-o em meia hora. Logo pensei que a sua vida era uma azáfama, que eu estaria a importuná-lo; era por respeito por mim que antecipava a conversa em vez de a cancelar. Nada disso!, constatei que era apenas para poder estar um pouco mais comigo, para termos mais tempo para conversar!
Será que a escrita vem da fala?, e a fala vem do que se troca no encontro pessoal - sobretudo no que não marca logo à partida a hora de acabar?


Palavras-chave: vocabulário, dicionário, escrita, escrita, leitura, arte, literatura, língua
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sábado, 16 de julho de 2016

TORNAR-SE PESSOA. O papel da mãe na determinação do comportamento do bebé. 01.

TORNAR-SE PESSOA.
O papel da mãe na determinação do comportamento do bebé. 01.
«A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é
Eça de Queiroz e a filha Maria em Torquay
"profundamente filho da mulher", disse Michelet. Sobretudo pela educação. Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer - um herói ou um pulha.

Diz-me a mãe que tiveste - dir-te-ei o destino que terás.
A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães.» (Eça de Queiroz, Obras de Eça de Queiroz, vol. XV, Uma Campanha Alegre, Edição do Centenário, Porto, Lello & Irmão, 1948, p. 413)
A. Campos Matos, num artigo publicado na Revista Portuguesa de Psicanálise, n.º 32[1]: Janeiro-Junho de 2012, pp. 41-52], e republicado em Eça de Queiroz, Silêncios, Sombras e Ocultações, também em  2012, pelas Edições Colibri, afirma nunca ter visto comentado «Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas.» (E. Colobri, p. 295) Aconselhado pela prudência, ainda não serei eu quem abrirá os comentários desejados ou em falta.
Na verdade, para um psicólogo, aluno entusiasta do dr. Pedro Luzes, notável psicanalista e profundo estudioso de Eça de Queiroz, a tentação de ousadas interpretações psicológicas que tirem partido da bem conhecida rejeição a que a mãe do escritor logo o votou, mesmo antes que o bebé tivesse nascido, é bem grande; mas resisto.
Eça tem 26 anos quando assim escreve. Conhecerá o casamento e a paternidade apenas 15 anos depois. Não deixa de ser impressionante que ele, tão novo, pensasse de forma, no meu entender, tão clarividente; clarividente e correcta!
Provocando a posição do determinismo da influência materna, absoluto e inabalável, que se pode deduzir das palavras do jovem Eça, quase me apetece verbalizar a presunçosa interrogação de que o mármore, em gastando-se - sim, o mármore também se gasta! -, o que fica?, o que deixa na criança feita homem? Não, não me interessa ir por aqui.
A frase de Michelet, «Je me sens profondémemt fils de la femme», reeditada em 1861, na obra "Le Pretre, la Femme et la Famille", é a afirmação de um homem maduro (Michelet nasceu em 1798), e Eça terá pensado, assim mesmo, "profundamente", sobre ela.
Herói ou pulha. Nos anos 20 do século XX, nos Estados Unidos da América, John Waston (o "pai" da Psicologia Behaviorista, que tão poderosa ainda é nos países anglo-saxónicos), mesmo que numa forma de pensar bastante diferente, afirma, também convictamente, o poder de, pela educação, fazer das crianças polícias ou ladrões, pelo simples arbítrio de quem educa. (1)
Repito, recomenda-me a prudência que fique por aqui, salientando apenas a importância tremenda que tem, no desenvolvimento infantil, os cuidados maternos, a educação e a influência social que a criança recebe da mãe - a mãe biológica ou a que dela faz a vez.
Prossiga o interminável confronto Natureza versus Cultura, entre Inato versus Adquirido.


Palavras-chave: pedagogia, mãe, pai, educação, relação mãe-filho, socialização, natureza versus cultura, inato versus adquirido
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(1) «Give me a dozen healthy infants, well-formed, and my own specified world to bring them up in and I’ll guarantee to take any one at random and train him to become any type of specialist I might select — doctor, lawyer, artist, merchant-chief and, yes, even beggar-man and thief, regardless of his talents, penchants, tendencies, abilities, vocations, and race of his ancestors.» John Watson, Behaviorism, New York, People's Institut, 1924, p. 82.

terça-feira, 12 de julho de 2016

A MENTE E O QUE A MOVE - QUERER É MESMO PODER? O papel determinante da curiosidade. 01.

A MENTE E O QUE A MOVE - QUERER É MESMO PODER?
O papel determinante da curiosidade. 01.
«A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América:- mas estes dois impulsos, tão diferentes em dignidade e resultados, brotam ambos dum fundo intrinsecamente precioso, a actividade do Espírito.» (Eça de Queiroz, Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa V (da Revista Moderna), Eduardo Prado. Lisboa, INCM, 200513, p. 120)
A crónica Eduardo Prado foi publicada em 1898, em fase de sofrimento já especialmente crónico do escritor.
A curiosidade foi a irresistível sede de saber que, com a simbólica tentação de Eva, fez a Humanidade inteira perder o Paraíso.
A curiosidade foi a fascinante força infantil (Eça tem razão, é uma coisa instintiva) que prendeu o psicólogo suíço Jean Piaget ao labor que lhe permitiu construir, tijolo a tijolo, um tremendo edifício de conhecimento sobre o desenvolvimento da mente infantil e da inteligência humana. A curiosidade desencadeia a acção, e da acção nascem as obras humanas. A curiosidade não é característica da espécie humana; mas - e mais uma vez Eça tem razão - é no ser humano que ela ganha "complexidade infinita".
Mais dois pequenos excertos da mesma crónica, e não preciso de comentar mais nada...
«O espírito porém que incita o homem a deixar a quietação do banco do seu jardim, a trepar a um muro escorregadio, a espreitar o jardim vizinho, possui já uma estimável força de vivacidade indagadora: - e a tendência que o moveu é essencialmente idêntica à tendência que, noutro tempo, levara outro homem a subir às rochas de Sagres, para contemplar, com sublime ansiedade, as neblinas atlânticas. Ambos são dois espíritos muito activos, almejando por conhecer o mundo e a vida que se estendem para além do seu horizonte e do seu muro.»
 O outro excerto:
«Mas ambos eles, o criador de civilização e o criador de escândalo, obedeceram à mesma energia íntima de iniciativa descobridora. São dois espíritos governados pela curiosidade, a vil curiosidade, como lhe chama Byron, com romântica ignorância... E de resto, sem essa qualidade vil, nunca o primitivo Adão teria emergido da caverna primitiva, e todos nós, mesmo o curiosíssimo Byron, permaneceríamos, através dos tempos, solitários e horrendos trogloditas.»
Afinal, não resisto a mais um pequeno comentário: será possível conter a curiosidade nefasta, "vil", "escandalosa"? Penso que sim - pela acção autorregulada da tentativa-erro; e pelo papel sábio desempenhado pela educação - em casa, na escola, nas comunidades de pertença.


Palavras-chave: curiosidade, pedagogia, motivação, ambição, educação, regulação dos comportamentos, autorregulação
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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A ESCOLA, “p’ra que lado é que me viro, p’ra que lado" - A educação e a escola. 01.

A ESCOLA, “p’ra que lado é que me viro, p’ra que lado"
A educação e a escola. 01.
«Sobretudo nas aldeias é quase impossível atrair ao estudo, numa saleta tenebrosa e abafada, crianças inquietas que vêm do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola não deve ter a melancolia da cadeia. Pestallozi, Froebel, os grandes educadores, ensinavam em pátios, ao ar livre, entre árvores. Froebel fazia alterar o estudo do ABC e o trabalho manual; a criança soletrava e cavava. A educação deve ser dada com higiene. A escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória, e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino. (13, p. 113)» 
Que resiste, desta apreciação de Eça, aos mais de 100 anos que já passaram desde que, originalmente, o escritor assim escreveu em As Farpas?... Se calhar, bem mais do que seria de desejar… Vejamos:
- vivemos um tempo em que se volta a invocar com grande intensidade os nomes e os exemplos de Pestallozi e Froebel - sinais dos seus extraordinários exemplos de sensibilidade humana e cuidado pedagógico
- as crianças e os jovens, em todo o Mundo tal se constata, estão, maioritariamente, nas escolas, nas salas de aula, "enfastiadas", "sem vontade", e "sem inteligência"
- as grilhetas mantêm-se firmes, reguladas por complexos e muito limitadores normativos legais; limitadores para todos: os alunos, os professor e os pais
- o professor continua a dominar, sem a força da palmatória, mas com procedimentos autoritários e disciplinares , às vezes bem mais perversos que as palmatórias
- o tédio e a rotina grassam… quem não concorda?...


Palavras-chave: escola, pedagogia, motivação, ambiente escolar
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13 – Queiroz, E. Uma Campanha Alegre. Das Farpas. Vol. II. Lisboa, Companhia Nacional Editora, 1891. (http://purl.pt/23928/3/l-72582-v/l-72582-v_item3/index.html#/10)

sábado, 2 de julho de 2016

A VISÃO DO MUNDO - As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.

A VISÃO DO MUNDO
As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.
«Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças, que tem os seus clássicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e génios – em nada inferior à nossa literatura de homens sisudos. Aqui apenas o bebé começa a soletrar, possui logo os seus livros especiais: são obras adoráveis, que não contêm mais de dez ou doze páginas, intercaladas de estampas, impressas em tipo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assunto é uma história, em seis ou sete frases, e decerto menos complicada e dramática que O Conde de Monte-Cristo ou Nana; mas, enfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catástrofe.
D. Emilia de Castro Pamplona, esposa do escritor e os quatro filhos
Tal é, para dar um exemplo, a lamentável tragédia dos Três Velhos Sábios de Chester: eram muitos velhos e muito sábios; e para discutirem coisas da sua sabedoria, meteram-se dentro de uma barrica; mas um pastor que vinha a correr atrás de uma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os três velhos sábios de Chester!
Como estas há milhares: a Cavalgada de João Gilpin é uma obra de génio.
Depois, quando o bebé chega aos seus oito ou nove anos, proporciona-se-lhe outra literatura. Os sábios, a barrica, os trambolhões, já o não interessariam; vêm então as histórias de viagens, de caçadas, de naufrágios, de destinos fortes, a salutar crónica do triunfo, do esforço humano sobre a resistência da Natureza.
Tudo isto é contado numa linguagem simples, pura, clara – e provando sempre que na vida o êxito pertence àqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio, e bondade. Raras vezes se leva o espírito da criança para o país do maravilhoso – não há nesta literatura nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se fala de anjos ou de fadas, é de modo que a criança, naturalmente, venha a rir-se desse lindo sobrenatural, e a considerá-lo do género «boneco», com os seus próprios carneirinhos de algodão.
O que se faz às vezes é animar de uma vida fictícia os companheiros inanimados da infância: as bonecas, os polichinelos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existência de uma boneca honesta e infeliz; ou os sofrimentos por que passou em campanha, numa guerra longínqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta literatura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a criança – mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e misérias atravessaram aqueles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas baionetas torcidas ela todos os dias endireita com os dedos: e assim pode ficar depositado num espírito de criança um justo horror da guerra.
As lições morais que se dão deste modo são inumeráveis, e tanto mais fecundas quanto saem da acção e da existência dos seres que ela melhor conhece – os seus bonecos.
Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze anos: popularizações de ciências; descrições dramatizadas do universo; estudos cativantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a história; e, enfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crua ponha no espírito tenro securas de misantropia, nem uma falsa idealização produza uma sentimentalidade mórbida.
É no Natal principalmente que esta literatura floresce.» (O Natal - A "Literatura de Natalç" para crianças,  Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias), Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 121-22) (1)
O texto onde fui buscar este (longo) excerto tem a data de 9 de Fevereiro de 1881. Eça de Queirós só será pai 6 anos depois.
Poderia eu ter optado por fazer uma transcrição mais pequena, mais directamente focada no tema da educação familiar e social do assunto das guerras entre os povos? Poderia, mas, como agora se tornou moda dizer até à exaustão, não seria a mesma coisa: que lição de pedagogia de Eça de Queirós sobre as leituras para crianças, ao longo das várias etapas do seu desenvolvimento!
Num tempo em que os sofisticados jogos outros programas informáticos invadiram imperialmente as horas de trabalho e de lazer das crianças, e colonizaram os seus interesses e motivações, o que valem estas dissertações e apreciações do notável escritor?
Para mim, valem muito. Repare-se como Eça de Queirós mostra uma sensibilidade notável para a evolução dos afectos, das motivações, das necessidades pessoais, das etapas do desenvolvimento cognitivo e da fantasia; e, finalmente, da aprendizagem social das crianças.


Palavras-chave: desenvolvimento pessoal, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, literatura infantil, visão do mundo
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