O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

sábado, 16 de julho de 2016

TORNAR-SE PESSOA. O papel da mãe na determinação do comportamento do bebé. 01.

TORNAR-SE PESSOA.
O papel da mãe na determinação do comportamento do bebé. 01.
«A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é
Eça de Queiroz e a filha Maria em Torquay
"profundamente filho da mulher", disse Michelet. Sobretudo pela educação. Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer - um herói ou um pulha.

Diz-me a mãe que tiveste - dir-te-ei o destino que terás.
A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães.» (Eça de Queiroz, Obras de Eça de Queiroz, vol. XV, Uma Campanha Alegre, Edição do Centenário, Porto, Lello & Irmão, 1948, p. 413)
A. Campos Matos, num artigo publicado na Revista Portuguesa de Psicanálise, n.º 32[1]: Janeiro-Junho de 2012, pp. 41-52], e republicado em Eça de Queiroz, Silêncios, Sombras e Ocultações, também em  2012, pelas Edições Colibri, afirma nunca ter visto comentado «Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; - mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas.» (E. Colobri, p. 295) Aconselhado pela prudência, ainda não serei eu quem abrirá os comentários desejados ou em falta.
Na verdade, para um psicólogo, aluno entusiasta do dr. Pedro Luzes, notável psicanalista e profundo estudioso de Eça de Queiroz, a tentação de ousadas interpretações psicológicas que tirem partido da bem conhecida rejeição a que a mãe do escritor logo o votou, mesmo antes que o bebé tivesse nascido, é bem grande; mas resisto.
Eça tem 26 anos quando assim escreve. Conhecerá o casamento e a paternidade apenas 15 anos depois. Não deixa de ser impressionante que ele, tão novo, pensasse de forma, no meu entender, tão clarividente; clarividente e correcta!
Provocando a posição do determinismo da influência materna, absoluto e inabalável, que se pode deduzir das palavras do jovem Eça, quase me apetece verbalizar a presunçosa interrogação de que o mármore, em gastando-se - sim, o mármore também se gasta! -, o que fica?, o que deixa na criança feita homem? Não, não me interessa ir por aqui.
A frase de Michelet, «Je me sens profondémemt fils de la femme», reeditada em 1861, na obra "Le Pretre, la Femme et la Famille", é a afirmação de um homem maduro (Michelet nasceu em 1798), e Eça terá pensado, assim mesmo, "profundamente", sobre ela.
Herói ou pulha. Nos anos 20 do século XX, nos Estados Unidos da América, John Waston (o "pai" da Psicologia Behaviorista, que tão poderosa ainda é nos países anglo-saxónicos), mesmo que numa forma de pensar bastante diferente, afirma, também convictamente, o poder de, pela educação, fazer das crianças polícias ou ladrões, pelo simples arbítrio de quem educa. (1)
Repito, recomenda-me a prudência que fique por aqui, salientando apenas a importância tremenda que tem, no desenvolvimento infantil, os cuidados maternos, a educação e a influência social que a criança recebe da mãe - a mãe biológica ou a que dela faz a vez.
Prossiga o interminável confronto Natureza versus Cultura, entre Inato versus Adquirido.


Palavras-chave: pedagogia, mãe, pai, educação, relação mãe-filho, socialização, natureza versus cultura, inato versus adquirido
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(1) «Give me a dozen healthy infants, well-formed, and my own specified world to bring them up in and I’ll guarantee to take any one at random and train him to become any type of specialist I might select — doctor, lawyer, artist, merchant-chief and, yes, even beggar-man and thief, regardless of his talents, penchants, tendencies, abilities, vocations, and race of his ancestors.» John Watson, Behaviorism, New York, People's Institut, 1924, p. 82.

terça-feira, 12 de julho de 2016

A MENTE E O QUE A MOVE - QUERER É MESMO PODER? O papel determinante da curiosidade. 01.

A MENTE E O QUE A MOVE - QUERER É MESMO PODER?
O papel determinante da curiosidade. 01.
«A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América:- mas estes dois impulsos, tão diferentes em dignidade e resultados, brotam ambos dum fundo intrinsecamente precioso, a actividade do Espírito.» (Eça de Queiroz, Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Textos de Imprensa V (da Revista Moderna), Eduardo Prado. Lisboa, INCM, 200513, p. 120)
A crónica Eduardo Prado foi publicada em 1898, em fase de sofrimento já especialmente crónico do escritor.
A curiosidade foi a irresistível sede de saber que, com a simbólica tentação de Eva, fez a Humanidade inteira perder o Paraíso.
A curiosidade foi a fascinante força infantil (Eça tem razão, é uma coisa instintiva) que prendeu o psicólogo suíço Jean Piaget ao labor que lhe permitiu construir, tijolo a tijolo, um tremendo edifício de conhecimento sobre o desenvolvimento da mente infantil e da inteligência humana. A curiosidade desencadeia a acção, e da acção nascem as obras humanas. A curiosidade não é característica da espécie humana; mas - e mais uma vez Eça tem razão - é no ser humano que ela ganha "complexidade infinita".
Mais dois pequenos excertos da mesma crónica, e não preciso de comentar mais nada...
«O espírito porém que incita o homem a deixar a quietação do banco do seu jardim, a trepar a um muro escorregadio, a espreitar o jardim vizinho, possui já uma estimável força de vivacidade indagadora: - e a tendência que o moveu é essencialmente idêntica à tendência que, noutro tempo, levara outro homem a subir às rochas de Sagres, para contemplar, com sublime ansiedade, as neblinas atlânticas. Ambos são dois espíritos muito activos, almejando por conhecer o mundo e a vida que se estendem para além do seu horizonte e do seu muro.»
 O outro excerto:
«Mas ambos eles, o criador de civilização e o criador de escândalo, obedeceram à mesma energia íntima de iniciativa descobridora. São dois espíritos governados pela curiosidade, a vil curiosidade, como lhe chama Byron, com romântica ignorância... E de resto, sem essa qualidade vil, nunca o primitivo Adão teria emergido da caverna primitiva, e todos nós, mesmo o curiosíssimo Byron, permaneceríamos, através dos tempos, solitários e horrendos trogloditas.»
Afinal, não resisto a mais um pequeno comentário: será possível conter a curiosidade nefasta, "vil", "escandalosa"? Penso que sim - pela acção autorregulada da tentativa-erro; e pelo papel sábio desempenhado pela educação - em casa, na escola, nas comunidades de pertença.


Palavras-chave: curiosidade, pedagogia, motivação, ambição, educação, regulação dos comportamentos, autorregulação
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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A ESCOLA, “p’ra que lado é que me viro, p’ra que lado" - A educação e a escola. 01.

A ESCOLA, “p’ra que lado é que me viro, p’ra que lado"
A educação e a escola. 01.
«Sobretudo nas aldeias é quase impossível atrair ao estudo, numa saleta tenebrosa e abafada, crianças inquietas que vêm do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola não deve ter a melancolia da cadeia. Pestallozi, Froebel, os grandes educadores, ensinavam em pátios, ao ar livre, entre árvores. Froebel fazia alterar o estudo do ABC e o trabalho manual; a criança soletrava e cavava. A educação deve ser dada com higiene. A escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória, e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino. (13, p. 113)» 
Que resiste, desta apreciação de Eça, aos mais de 100 anos que já passaram desde que, originalmente, o escritor assim escreveu em As Farpas?... Se calhar, bem mais do que seria de desejar… Vejamos:
- vivemos um tempo em que se volta a invocar com grande intensidade os nomes e os exemplos de Pestallozi e Froebel - sinais dos seus extraordinários exemplos de sensibilidade humana e cuidado pedagógico
- as crianças e os jovens, em todo o Mundo tal se constata, estão, maioritariamente, nas escolas, nas salas de aula, "enfastiadas", "sem vontade", e "sem inteligência"
- as grilhetas mantêm-se firmes, reguladas por complexos e muito limitadores normativos legais; limitadores para todos: os alunos, os professor e os pais
- o professor continua a dominar, sem a força da palmatória, mas com procedimentos autoritários e disciplinares , às vezes bem mais perversos que as palmatórias
- o tédio e a rotina grassam… quem não concorda?...


Palavras-chave: escola, pedagogia, motivação, ambiente escolar
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13 – Queiroz, E. Uma Campanha Alegre. Das Farpas. Vol. II. Lisboa, Companhia Nacional Editora, 1891. (http://purl.pt/23928/3/l-72582-v/l-72582-v_item3/index.html#/10)

sábado, 2 de julho de 2016

A VISÃO DO MUNDO - As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.

A VISÃO DO MUNDO
As relações entre os grupos. Como falar das guerras às crianças? 01.
«Em Inglaterra existe uma verdadeira literatura para crianças, que tem os seus clássicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e génios – em nada inferior à nossa literatura de homens sisudos. Aqui apenas o bebé começa a soletrar, possui logo os seus livros especiais: são obras adoráveis, que não contêm mais de dez ou doze páginas, intercaladas de estampas, impressas em tipo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assunto é uma história, em seis ou sete frases, e decerto menos complicada e dramática que O Conde de Monte-Cristo ou Nana; mas, enfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catástrofe.
D. Emilia de Castro Pamplona, esposa do escritor e os quatro filhos
Tal é, para dar um exemplo, a lamentável tragédia dos Três Velhos Sábios de Chester: eram muitos velhos e muito sábios; e para discutirem coisas da sua sabedoria, meteram-se dentro de uma barrica; mas um pastor que vinha a correr atrás de uma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os três velhos sábios de Chester!
Como estas há milhares: a Cavalgada de João Gilpin é uma obra de génio.
Depois, quando o bebé chega aos seus oito ou nove anos, proporciona-se-lhe outra literatura. Os sábios, a barrica, os trambolhões, já o não interessariam; vêm então as histórias de viagens, de caçadas, de naufrágios, de destinos fortes, a salutar crónica do triunfo, do esforço humano sobre a resistência da Natureza.
Tudo isto é contado numa linguagem simples, pura, clara – e provando sempre que na vida o êxito pertence àqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio, e bondade. Raras vezes se leva o espírito da criança para o país do maravilhoso – não há nesta literatura nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se fala de anjos ou de fadas, é de modo que a criança, naturalmente, venha a rir-se desse lindo sobrenatural, e a considerá-lo do género «boneco», com os seus próprios carneirinhos de algodão.
O que se faz às vezes é animar de uma vida fictícia os companheiros inanimados da infância: as bonecas, os polichinelos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existência de uma boneca honesta e infeliz; ou os sofrimentos por que passou em campanha, numa guerra longínqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta literatura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a criança – mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e misérias atravessaram aqueles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas baionetas torcidas ela todos os dias endireita com os dedos: e assim pode ficar depositado num espírito de criança um justo horror da guerra.
As lições morais que se dão deste modo são inumeráveis, e tanto mais fecundas quanto saem da acção e da existência dos seres que ela melhor conhece – os seus bonecos.
Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze anos: popularizações de ciências; descrições dramatizadas do universo; estudos cativantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a história; e, enfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crua ponha no espírito tenro securas de misantropia, nem uma falsa idealização produza uma sentimentalidade mórbida.
É no Natal principalmente que esta literatura floresce.» (O Natal - A "Literatura de Natalç" para crianças,  Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias), Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 121-22) (1)
O texto onde fui buscar este (longo) excerto tem a data de 9 de Fevereiro de 1881. Eça de Queirós só será pai 6 anos depois.
Poderia eu ter optado por fazer uma transcrição mais pequena, mais directamente focada no tema da educação familiar e social do assunto das guerras entre os povos? Poderia, mas, como agora se tornou moda dizer até à exaustão, não seria a mesma coisa: que lição de pedagogia de Eça de Queirós sobre as leituras para crianças, ao longo das várias etapas do seu desenvolvimento!
Num tempo em que os sofisticados jogos outros programas informáticos invadiram imperialmente as horas de trabalho e de lazer das crianças, e colonizaram os seus interesses e motivações, o que valem estas dissertações e apreciações do notável escritor?
Para mim, valem muito. Repare-se como Eça de Queirós mostra uma sensibilidade notável para a evolução dos afectos, das motivações, das necessidades pessoais, das etapas do desenvolvimento cognitivo e da fantasia; e, finalmente, da aprendizagem social das crianças.


Palavras-chave: desenvolvimento pessoal, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, literatura infantil, visão do mundo
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quarta-feira, 22 de junho de 2016

CULTURA DE ORIGEM, CULTURA DE PERTENÇA - Ser português. Há uma maneira de ser português? 01.

A CULTURA DE ORIGEM, CULTURA DE PERTENÇA
Ser português. Há uma maneira de ser português? 01.
«Monsieur le Rédacteur de la Revue Universelle
(…) elle [a obra, O Mandarim] caractérise fidèlement, ce me semble, la tendance la plus naturelle, la plus spontanée de l’esprit portugais. Car, quoique aujourd’hui toute notre jeunesse littéraire, et même quelques-uns des ancêtres échappés du Romantisme, s’appliquent patiemment à étudier la nature, et font de constants efforts pour mettre dans les livres la plus grande somme de réalité vivante, nous sommes restés ici, dans ce coin ensoleillé du monde, très idéalistes au fond et très lyriques. Nous aimons passionnément, Monsieur, à tout envelopper dans du bleu ; une belle phrase nous plaira toujours mieux qu’une notion exacte ; la fabuleuse Mélusine, dévoratrice de cœurs d’hommes, charmera toujours nos imaginations incorrigibles bien plus que la très humaine Madame Marnésse ; et toujours nous considérerons la fantaisie et l’éloquence comme les deux signes, et les seuls vrais, de l’homme supérieur. Si par hasard on lisait en Portugal Stendhal, on ne pourrait jamais le goûter : ce qui chez lui est exactitude, nous le considérerions stérilité. Des idées justes, exprimées dans une forme sobre, ne nous intéressent guère : ce qui nous charme, ce sont des émotions excessives, traduites avec un grand faste plastique de langage. (…) Nous sommes des hommes d’émotion, pas de raisonnement.» ([Carta ao Redactor da Revue Universelle (O Mandarim)],  Cartas Públicas, Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, INCM, 2009, pp. 153-54) (1)
A carta a que pertence este excerto é, tecnicamente, uma carta prefacial. Tem a data de 2 de Agosto de 1884, quando Eça tem 39 anos e 8 meses de idade. É cônsul em Bristol (Inglaterra), mas encontra-se em Lisboa; "viajava frequentemente para França (país e cultura que o fascinavam Victor Hugo era o seu herói e Balzac um dos seus mentores)", diz Nuno de Mello Bello.
Felizmente para nós, portugueses, também Eça não deixou de querer escrever sobre a maneira de ser português - a ela recorremos ora para afirmar os dons e as virtudes, ora para lhe apontar as fraquezas e as maleitas.
É inerente ao processamento cognitivo humano a categorização - ao mesmo tempo simplificadora e organizadora do pensamento - das pessoas e dos grupos: os portugueses, os franceses, os ingleses, os espanhóis, etc., etc., etc. Será que, na verdade, há uma maneira de ser portuguesa, tal como uma francesa, inglesa, ou qual seja?...
E, se a há, é fado?, é destino?, é genética?; é contextual?, é ambiental? (a tal ideia do jardim à beira mar plantado). Num outro plano, provavelmente mais interessante: é modificável?, é treinável?, é educável?
A Antropologia fala dos padrões de cultura e da personalidade de base...
Admitindo-a (apetece-me puxar, talvez abusivamente, a interrogação-desabafo com que Eça acaba a carta ao Redactor da Revue Universelle: «Contente? Não, senhor, resignado.»), o que podemos fazer dela, ou com ela?
Pensar que, como todas as tipificações simplificadoras que se fazem de todos os povos do mundo, a tipificação do Português é de quilate equivalente, que não é boa, nem má, e que simplesmente é assim mesma? Quando ganhamos (num Europeu de futebol, por exemplo), dedicamos-lhe loas; quando perdemos, carpimos-lhe o inevitável fado.
Entre os extremos, entre o oito e o oitenta não haverá mesmo espaço para o sábio exercício da Educação?


Palavras-chave: personalidade de base, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização, ser português
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(1) Tradução livre:
«(...) Ela [a obra, O Mandarim] caracteriza precisamente, parece-me, a tendência mais natural, mais espontânea do espírito Português. (...) Pois, ainda que hoje toda a nossa juventude literária, e até mesmo alguns dos antepassados ​​escapados ao Romantismo, dedicam-se pacientemente a estudar a natureza, e fazem esforços pertinentes para pôr nos livros a maior quantidade possível de realidade viva, - nós ficamos aqui, neste canto ensolarado do mundo, muito idealistas no âmago e muito líricos. Nós adoramos, Senhor, banhar tudo no azul do céu; uma frase bonita sempre nos agradará mais do que uma noção exacta; a fabulosa Melusina (2), devoradora dos corações dos homens, sempre encantará a nossa incorrigível imaginação mais do que a muito humana Senhora Marnésse (3); e consideramos sempre a Imaginação e Eloquência como os dois sinais, os únicos verdadeiros sinais, do homem superior. Se por acaso se lesse Stendhal em Portugal, nunca ele seria apreciado: o que nele é rigor, nós considerá-lo-íamos esterilidade. As ideias justas, expressas de uma forma simples, dificilmente nos interessam: o que nos encanta é as emoções excessivas, traduzidos com grande pompa plástica na linguagem. (...) Nós somos homens de emoção, não razão.»
(2) Melusina é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.
(3) [Ainda] não sei bem quem é esta senhora. Eventualmente, confusão com Marneffe? Ver aqui.

terça-feira, 21 de junho de 2016

TORNAR-SE PESSOA - Ídolos. 01.

TORNAR-SE PESSOA
Ídolos. 01.
«Então, perante este céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar n’um enlevo, como um discipulo. E para sempre assim me conservei na vida.» (11, p. 482-483) (1)
Antero de Quental é cerca de 3 anos e meio mais velho do que Eça de Queirós. Eça terá 16 anos quando conhece Antero, como descreve neste maravilhoso texto da colectiva obra “Anthero de Quental: In Memoriam”(2); Antero terá 20 anos.
Esta ocorrência acontece na escadaria da Sé Nova de Coimbra.
Corre a Primavera de 1862, Eça tinha-se matriculado no curso de Leis da Universidade de Coimbra, em 14 de Outubro do ano anterior. É uma modalidade frequente do processo de socialização - quiçá, inevitável -, o que aconteceu a Eça de Queirós e que ele relata de forma tão sincera e humilde. Repentinamente ou pouco a pouco, a admiração, o fascínio, por um colega mais velho impõe-se, quantas vezes mais fortemente do que a nossa vontade consegue mandar.
Nos dias de hoje, a televisão, o cinema, a Internet, aumentaram exponencialmente as figuras com que nos identificamos, que podemos tomar para ídolos. Também a variedade de ocupações. Nos tempos de Eça não havia televisão e não havia cinema; a própria fotografia ainda era incipiente. Quanto às actividades, por exemplo, não havia desporto massificado como agora acontece, por exemplo, com o imperial futebol ou mesmo as outras modalidades desportivas.
Os ídolos formavam-se, essencialmente, a partir do contacto com os colegas mais velhos, os personagens da História e os heróis da Literatura. 
Não deixemos de ter em atenção que os processos psicológicos que desencadeiam e alimentam o fascínio e a admiração por um colega, ou amigo, mais velho (noutras vezes, é um familiar – pai, tio, primo, avô…), esses, quase absolutamente são os mesmos – os de Eça e os nossos. É que resultam directamente das necessidades de desenvolvimento pessoal e social dos seres gregários que somos.
Um pouco mais à frente no texto, na página seguinte, Eça escreve esta frase significativa:
“N'esse tempo elle era em Coimbra, e nos dominios da intelligencia, o Principe da Mocidade.”

Palavras-chave: ídolo, identificação, imitação, modelagem, atracção interpessoal, socialização
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(1) 11 – Anthero de Quental. In Memoriam. Porto, Mathieu Lugan Editor, 1896.
(2) O texto de Eça de Queirós sobre Antero de Quental, "Um Génio Que Era um Santo" é um texto notável. Os editores desesperaram anos à espera que Eça, primeiro, o começasse; e, depois, lhe desse a forma final. O resultado é, no meu entender, sublime. (Eça de Queirós: Um Génio Que Era um Santo, in "Antero de Quental. In Memoriam", Lisboa, 1896.)

terça-feira, 14 de junho de 2016

FAMÍLIA - Relação pais-filhos. 01.

FAMÍLIA
Relação pais-filhos. 01.
«Os pequenos estão muito bons – muito quietos à mesa. Conversam, discutem, grulham, mas com a máxima serenidade. É o caso de empregar a velha expressão “nem parecem os mesmos”. O Bebert [Alberto] sobretudo é a própria mansidão. Não teve uma perrice, não fez um distúrbio. Ao jantar come com muito apetite, dá a sua opinião sobre os assuntos e lê o Temps alto, com convicção, numa voz de teatro. Tudo isto tem sido o resultado de firmeza e doçura. Comecei por lhes fazer um sério discurso – aquilo que nos quartéis se chama da “teoria”. Depois passei a algumas aplicações práticas provando que estava disposto a ser inexorável. Imediatamente reinou uma ordem deliciosa.» (01, p. 384)
Numa circunstância rara da vida de casal, Eça de Queiroz está em casa, em Paris, sozinho com os
O escritor com os dois filhos mais velhos: Maria e José Maria
filhos rapazes. Corre o ano de 1899, entrara 8 dias antes o mês de Agosto. A esposa Emília e a filha Maria estão fora, em Bourbonne-ls-Bains, em tratamentos para o reumatismo. Alberto – o Bebert -, o filho mais novo, tem 8 anos; os outros têm 11 e 9.
Sabemos, por senso-comum, que, mesmo em famílias em que ambos os pais estão regularmente presentes e em sintonia um com o outro, os filhos têm comportamentos diferentes quando estão só com um deles, seja por pouco ou muito tempo. No caso dos filhos de Eça de Queiroz, a figura habitualmente presente, que garante a estabilidade afectiva e os cuidados à prole, é a mãe.
Pelo que Eça diz, podemos pensar que os filhos seriam, como diz a gente do povo, “frescos”, traquinas, travessos. De notar é a intenção que o pai expressa à mãe de que o estilo educativo seja composto de “firmeza”, mas também de “doçura”.
Nem sempre o progenitor que se ocupa habitualmente com as crianças reage bem aos aparentes sucessos do outro progenitor, bastante mais ocasional na liderança dos cuidados educativos dispensados aos filhos. Quantas vezes pequenos desacordos, pontos de vista divergentes, conversas que ficam por acabar, são rastilho para  silenciosos, mas crescentes, desentendimentos entre o pai e a mãe, e, consequentemente, o enfraquecimento da tarefa educativa comum…
No caso de Eça e Emília, a reacção da mãe dos rapazes é notável, por isso, exemplar. Responde ela, como legenda a filha Maria, mais de 70 anos depois, “com um ligeiro tom de ironia muito terna”:
«Estimo imenso que eles (os pequenos) tenham juízo – pelas tuas cartas parece mesmo que é uma conversão – que espero encontrar em pleno vigor! Faz-me imensa ternura o Alberto lendo o Temps com voz de estertor! Coitadinho! Deus queira que o encontre com o seu narizinho sem restos do trambolhão. Maria quer para ti des caissons de baisers, d' amour, de tendresse! entrego! E ainda: Como estás de saúde?” (01, p. 385-386)

Palavras-chave: estilos educativos, relação pai-filho, relação pai-mãe
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(1) 01 – Eça de Queiroz entre os Seus, apresentado por sua filha – Cartas íntimas. Lello & Irmão Editores, Porto, 1974.