O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

sábado, 18 de agosto de 2018

EÇA ESCRITOR: Deus existe ou é a consciência que o constrói?

"A Relíquia" é um texto, do princípio ao fim, de ironia muito cáustica do universo do beatismo
A Relíquia ilustrada por Rui Campos Matos
religioso - o fanatismo clerical, social e popular; e o imenso comércio, tipo vendilhões do Templo, a ele associado.
No final, as palavras são quase de conclusão moral a tirar. Notáveis! Primeiro sobre a hipocrisia, e depois sobre a crença em Deus e a sua relação com a a intrínseca experiência do Eu-consciente que acompanha o ser humano ao longo de toda a sua vida.
«De rojo eu [Teodorico Raposo] estendia abjectamente os lábios para os pés do Cristo, transparentes, suspensos no ar, com pregos que despediam trémulas radiâncias de jóia. E a voz passou sobre mim, cheia e rumorosa, como a rajada que curva os ciprestes:
- Tu dizes que eu te persigo! Não. O óculo, isso a que chamas "profundas sociais", são obra das tuas mãos - não obra minha. Eu não construo os episódios da tua vida; assisto a eles e julgo-os placidamente... Sem que eu me mova, nem intervenha influência sobrenatural - tu podes ainda descer a misérias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraísos da terra e ser director de um Banco... Isso depende meramente de ti, e do teu esforço de homem... Escuta ainda! Perguntavas-me, há pouco, se eu me não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro Deus criado pelos homens... Sou anterior aos deuses transitórios; eles dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem; e eternamente permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a consciência; sou neste instante a tua própria consciência reflectida fora de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual, tu, mal educado e pouco filosófico, estás habituado a compreender-me... Mas basta que te ergas e me fites, para que esta imagem resplandecente de todo se desvaneça.
E ainda eu não levantara os olhos - já tudo desaparecera!
Então, transportado como perante uma evidência do sobrenatural, atirei as mãos ao céu e bradei:
- Oh meu Senhor Jesus, Deus e filho de Deus, que te encarnaste e padeceste por nós...
Mas emudeci... Aquela inefável voz ressoava ainda em minha alma, mostrando-me a inutilidade da hipocrisia. Consultei a minha consciência, que reentrara dentro de mim - e bem certo de não acreditar que Jesus fosse filho de Deus e de uma mulher casada de Galileia (como Hércules era filho de Júpiter e de uma mulher casada da Argólida) - cuspi dos meus lábios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inútil da oração.»
(A Relíquia. Edições Livro do Brasil, Lisboa, 10.ª edição, sem data, pp. 267-8.) 

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