O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Tolerâncias religiosas... ou não. Pelo menos, "pouco cristão".

"Nenhum dos cadernos com as suas notas de viagem chegou ao público enquanto o escritor foi vivo,
Um diagrama da Igreja do Santo Sepulcro,
mostrando diferentes partes da igreja,
em especial a capela onde Jesus foi enterrado
e o altar da crucificação.
mas tornaram-se parte das suas obras. A influência da visita de Eça ao Oriente destaca-se sobretudo em A Relíquia, A Correspondência de Fradique Mendes e as Lendas de Santos, mas também n’ Os Maias, O Mandarim, e em artigos publicados em jornais e postumamente reunidos nas Notas Contemporâneas, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres.

Teodorico, d’A Relíquia, é a personagem cujo percurso mais se aproxima do do autor, mas também Fradique Mendes, Onofre, Teodoro, Carlos da Maia, Basílio, André Cavaleiro e João da Ega têm forte ligação ao Oriente. Um aspecto interessante relativo a todas estas personagens, à excepção de Fradique Mendes, é o facto de, para todas elas, a viagem representar um momento crucial nas suas vidas, um momento de mudança. As palavras de Teodorico, que refere que “esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira”, podem muito bem ser a síntese que Eça faria da sua própria viagem." (Fundação Eça de Queiroz; os destaques a negrito são de minha opção.)

D'A Relíquia, um trecho espantoso sobre a (in)tolerância religiosa, em particular, a cristã:
«— Irra, caramba, larga-me, animal!
E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guarda-chuva a pingar, dentro do santuário sublime onde a cristandade guarda o túmulo do seu Cristo. Mas logo estaquei, surpreendido, sentindo um delicioso e grato aroma de tabaco da Síria. Num amplo estrado, afofado em divã, com tapetes da Caramânia e velhas almofadas de seda, reclinavam-se três turcos, barbudos e graves, fumando longos cachimbos de cerejeira. Tinham dependurado na parede as suas armas. O chão estava negro dos seus escarros. E, diante, um servo em farrapos esperava, com uma taça fumegante de café, na palma de cada mão.
Pensei que o catolicismo, previdente, estabelecera à porta do lugar divino uma Loja de bebidas e aguardentes, para conforto dos seus romeiros. Disse baixo a Pote:
— Grande idéia! Parece-me que também vou tomar um cafezinho!
Mas logo o festivo Pote me explicou que esses homens sérios, de cachimbo, eram soldados muçulmanos policiando os altares cristãos, para impedir que em torno ao mausoléu de Jesus se dilacerem, por superstição, por fanatismo, por inveja de alfaias, os sacerdócios rivais que ali celebram os seus ritos rivais — católicos como o Padre Pinheiro; gregos ortodoxos para quem a cruz tem quatro braços; abissínios e armênios, coptas que descendem dos que outrora em Mênfis adoravam o boi Àpis; nestorianos que vêm da Caldéia; georgianos que vêm do Mar Cáspio; maronitas que vêm do Líbano, todos cristãos, todos intolerantes, todos ferozes!... Então saudei com gratidão esses soldados de Maomé que, para manter o recolhimento piedoso em torno do Cristo morto, serenos e armados velam à porta, fumando.»

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