O valor das suas próprias palavras

“Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia – que é apenas a criação impessoal do seu espírito.” (in A Correspondência de Fradique Mendes)

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Desejos Pessoais versus Convenções Sociais: p'ra que lado é que me viro, p'ra que lado?

TORNAR-SE PESSOA.
Controlo dos impulsos e aceitação das convenções sociais. 01.
«O coração tem os seus élans, mas a vida tem também os seus cerimoniais. Que devo fazer?" (Eça de Queiroz, Carta a Manuel de Castro, Conde de Resende) (1)
Quando assim escreve, quando assim sente, o apaixonado Eça de Queiroz é praticamente quarentão,
Emília de Castro Resende antes do
 seu casamento com Eça de Queiroz
faltam-lhe apenas 4 meses para lá chegar. E já será depois de entrar nos "entas" que ele casará com Emília de Castro. A carta é dirigida ao irmão da apaixonada, numa troca de correspondência que, segundo Maria d'Eça de Queiroz, filha do escritor, terá sido da iniciativa do conde de Resende. Conhece-se também a carta que já no dia 28 de Julho Eça enviara, provavelmente como primeira resposta, ao seu "amigo indiscreto".
Aos 40 anos, Eça de Queiroz tem já a mente disciplinada pela exigência e esforço da escrita. Humanamente, tem a experiência de um número considerável de relacionamentos amorosos, até com duas irmãs americanas - em simultâneo!; e, naturalmente, conhece também, a experiência amorosa de muitos dos seus amigos. Mas...
Mas mesmo assim, na mesma carta, Eça escreve duas vezes a mesma pergunta - «Que devo fazer?»; e ainda mais 3 outras perguntas reflectindo ansiosas dúvidas.
Mas como fazer os sujeitos com metade da sua idade, na pujança das exigência biológicas e hormonais, que são, afinal, os habituais protagonistas dos afectos, impulsos e atracções amorosas assim tão intensas?
Ele próprio, o escritor, deixa-nos uma muito interessante pista para a resposta à pertinente pergunta.
Na verdade, na mesma carta ao querido amigo, irmão da apaixonada, logo a seguir, Eça escreve:
«Tu que foste o amigo sublimemente indiscreto - sê agora o conselheiro generosamente avisado.»
Quer dizer, o apaixonado declara que precisa de um amigo, mostra confiança e antecipa gratidão.
Ele reconhece o impulso que o motiva
«Se eu pudesse escutar só o desejo do meu coração - partia para aí amanhã.»
e também, implicitamente, que precisa de controlar tal impulso.
Eça está em Londres, que nunca terá sentido tão longe da Granja, em Portugal, quanto naquele momento!
Parece, pois, que a distância e a idade são determinantes para que o ansioso enamorado consiga ter mão nos impulsos e aceite percorrer as etapas das convenções sociais.

Palavras-chave: impulsos, afectos, paixão, convenções sociais, socialização, amigos
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(1) A. Campos Matos, Eça de Queiroz. Correspondência. Vol. I. Lisboa, Caminho, 2008, p. 390.

1 comentário:

  1. Será que Eça resistiu aos seus impulsos, ou conseguiu respeitar os cerimoniais das convenções sociais? É o seguinte, o testemunho da filha Maria, naturalmente filho da isenção que, com boa fé, podemos esperar de quem é afectivamente, por laços de sangue, muito próximo:
    «Sob a reserva elegante e um pouco altiva dessas primeiras cartas [trocadas entre Eça e Emília] - que podem servir de meditação perante as expressões empregadas hoje em dia - adivinham-se sentimentos profundos que pouco a pouco se irão revelando, delicadezas de um coração de homem, subtil valor de uma alma de mulher: - a absoluta sinceridade de uma afeição que se pressente em toda a força e beleza.»
    Eça de Queiroz, "Eça de Queiroz entre os seus, apresentado por sua filha, Cartas Íntimas", Lisboa, Caminho, 2012, pp. 23-4

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